Manuel Carmo Gomes deixa alertas sobre o regresso às aulas e explica como os contágios podem ser evitados.
"As escolas preocupam-me seriamente, receio que se possam vir a tornar o próximo epicentro da epidemia” de covid-19, diz Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e um dos peritos ouvidos pelo Governo.
Há muita gente que acredita que este ano tudo irá correr melhor com a gripe sazonal e os outros vírus em circulação no Inverno porque estamos a proteger-nos com máscaras, distanciamento físico e higienização das mãos. Concorda com esta teoria?
Concordo. O R0 do Cov-2 [o novo coronavírus] é mais alto do que o da gripe (2,5 a 3,5 versus 1,1 a 1,3) e o de outros coronavírus, rinovírus, adenovírus, etc. Além disso, as formas de transmissão dos outros vírus não diferem do Cov-2. Sendo assim, as medidas que travam a transmissão do CoV-2 devem em grande parte travar os outros.
Em Julho dizia já que, a partir de Outubro e até Fevereiro, o risco iria aumentar por causa dos ambientes fechados, do regresso às aulas e dos transportes. Será mesmo assim? Que lições retiramos do que aconteceu no hemisfério Sul?
Sim. A transmissão por aerossol desempenha um papel importante na propagação do Cov-2. Os ambientes fechados, com muitas pessoas, durante muitos minutos, são as condições ideais para a transmissão por aerossol. No hemisfério Sul, assistimos ao lockdown de Melbourne por causa da covid, a Argentina não pára de aumentar, anda agora pelos 10 mil casos por dia, a África do Sul teve uma onda epidémica monstruosa (aparentemente já controlada) e o Brasil é o desastre que se conhece. Quanto à gripe, os dados da Austrália sugerem que quase não se deu por ela. Portanto, a lição que retiro é: ressurgimento da covid e pouca circulação de outras infecções respiratórias. As escolas preocupam-me seriamente, receio que se possam vir a tornar o próximo epicentro da epidemia. Quando detectarmos um caso numa escola, pode haver já mais 10 casos assintomáticos a circular, os quais já tiveram tempo para espirrar para fora da escola. Ficarei (agradavelmente) surpreendido se me enganar.
Foi anunciado que este ano a vacinação da gripe ia começar mais cedo, logo no início de Outubro, e que o número de doses ia ser reforçado para dois milhões no SNS e mais 600 mil nas farmácias. Isto será suficiente? Qual a importância desta medida no contexto actual? A gripe pode circular em interacção com os outros vírus, nomeadamente o novo coronavírus?
Além dos objectivos de anos anteriores, nomeadamente a protecção dos grupos com maior risco de complicações de gripe, este ano a vacinação contra a gripe tem objectivos adicionais. O primeiro é evitar co-infecção com gripe e covid. A interacção entre as duas é mal conhecida, mas eu diria que não agoira nada de bom. O segundo é evitar que sintomatologia de covid seja confundida com gripe (e vice-versa) porque os sintomas das duas doenças são indistinguíveis no início. Se uma pessoa não estiver vacinada e tiver sintomas gripais, será testada para despistar a covid. Este teste poderia ter sido evitado se a pessoa de facto contraiu gripe. A vacinação pretende evitar milhares de situações como esta. Um excesso de afluências ao teste para covid irá sobrecarregar os laboratórios e atrasar os resultados dos testes. Em vez de esperar até 24 horas, um infectado com covid poderá ter de esperar mais tempo pelo resultado e, se não se auto-isolar, poderá andar a propagar a covid entre os seus contactos.
Quando se poderá falar numa segunda onda de infecções pelo novo coronavírus? O que estamos a observar actualmente é um crescimento sustentado apenas?
Sim, desde o início da última semana de Agosto até meio de Setembro. Passámos de uma média (sete dias) inferior a 300 casos por dia para mais de 500 por dia desde 13 de Setembro. É um recrudescimento da doença sem dúvida. As taxas de crescimento diário do número de casos estiveram cerca de um mês entre 0,2% e 0,6% (meio de Julho a meio de Agosto), mas recentemente ultrapassaram estes valores consistentemente. Em epidemiologia não existe definição de “onda”, mas, se olharmos para o gráfico de incidência, é essa a imagem que fica na retina: estamos a entrar numa segunda onda, embora ainda um pouco abaixo do que assistimos em fim de Março e Abril. É provável que suba mais, pelo menos é o que diz o modelo de um colega da FCUL [Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa]. A dinâmica destas doenças gera uma inércia difícil de parar de imediato.
Com base num modelo matemático, concluiu que, para evitar uma segunda onda, a sociedade teria que reduzir para metade os contactos e os alunos nas escolas para 70% ou pelo menos para metade. O que quer dizer com isto?
A resposta curta é a seguinte: as pessoas têm de ter menos contactos infecciosos (ou contagiosos) entre si. Na sociedade, deveriam ter cerca de metade do que tinham antes da covid. Nas escolas, idealmente esses contactos deveriam ser 30% do que eram antes da covid. A resposta completa requer uma pequena explicação que vou dar, sacrificando um bocadinho o rigor em favor da compreensão. Há contactos e há contactos contagiosos (isto é infecciosos, ou capazes de transmitir). Começo pelos contactos tout court. Para a covid, um contacto é estar na presença de outra pessoa a uma distância inferior a dois metros durante algum tempo (>15 min), ou então estar num espaço fechado com outra pessoa durante mais tempo. Quanto tempo depende de muitas coisas, nomeadamente da humidade e do volume da sala, mas digamos uma hora ou mais.
O facto de termos contacto com outra pessoa não implica que este seja contagioso. Se ambos tivermos máscaras, se eu não fizer mão-boca-olhos antes de lavar as mãos, se a sala estiver ventilada, o contacto tem muito baixa probabilidade de ser contagioso. Portanto, eu posso ter dez contactos por dia e, no entanto, ter muito baixo risco de ser contagiado (ou de contagiar).
Nos modelos matemáticos esta dualidade (contacto e contagiosidade) é representada multiplicando o número de contactos pela probabilidade de um contacto poder contagiar. Por exemplo, se eu contactei dez pessoas diferentes hoje, mas a probabilidade de contágio é de apenas 0,1 porque estive sempre a usar protecções, então isto equivale a apenas um contacto infeccioso (= 10 x 0,1). Quando nós dizemos que os contactos têm de ser reduzidos a metade (sociedade) e a 30% (escolas), estamos a falar de contactos infecciosos e há duas formas de conseguir isso. Uma é reduzir o número de pessoas diferentes com que contactamos, outra é usarmos todas as protecções recomendadas: distância, máscara, higiene, ventilação. É indiferente que estratégia usa. Idealmente deve usar as duas: evitar aglomerados de pessoas (evita os contactos), evitar espaços fechados, seguir as recomendações (evita que os contactos que acontecem sejam infecciosos).
Alexandra Campos
In “Público”