As autópsias a doentes que não sobreviveram à covid-19 estão a abrir pistas novas. Ainda não se sabe se virão a alterar o tratamento da doença, porém já tiveram influência na identificação de comportamentos das células em reação a ela

 

As autópsias dos doentes que não resistiram à covid-19 estão a permitir juntar informação importante sobre a doença que já matou mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo.

 

À medida que os serviços de saúde nos Estados Unidos começaram a organizar-se a partir de final de maio, início de junho, depois de um período de dedicação total ao tratamento de doentes de coronavírus, passaram a dedicar tempo ao estudo dos cadáveres daí tirando conclusões úteis.

 

Entre as descobertas mais importantes que constam do conjunto dos estudos desenvolvido está o facto de o vírus atacar com mais violência os pulmões, ainda que tenham sido encontrados patógenos em zonas do cérebro, rins, fígado, trato gastro-intestinal, baço, e nas células endoteliais dos vasos sanguíneos, como se suspeitava. Assim o explica um texto publicado nesta quarta-feira no diário norte-americano “Washington Post”, no qual se lê que as autópsias revelaram a descoberta de coagulação generalizada em vários órgãos.

 

COÁGULOS SANGUÍNEOS NUNCA VISTOS

 

Além destas, os patologistas encontraram provas que permitem concluir que a privação de oxigénio no cérebro e a formação de coágulos sanguíneos pode começar num estágio inicial do processo da doença, o que pode ter “implicações fundamentais no modo como as pessoas com covid-19 estiverem a ser tratadas em casa, mesmo que não haja necessidade de serem hospitalizadas”.

 

Estas análises publicadas recentemente foram recolhidas de doentes com idades entre os 32 e os 90 anos, que morreram numa meia dúzia de instituições norte-americanas. O resultado das investigações permitiu confirmar dados já antes avançados, refutar outros e, principalmente, abrir portas a uma série de mistérios novos sobre o patogeno.

 

A patologista Amy Rapkiewicz, responsável pelas autópsias no serviço Langone Health da Universidade de Nova Iorque, encontrou num corpo que analisou um paralelo com o dengue, doença tropical transmitida por mosquito: “A covid-19 e o dengue são muito diferentes, mas há células nas duas doenças que são semelhantes”, diz, citada pelo “Washington Post”.

 

Essenciais como fonte de descobertas sobre novas doenças como o IVH/sida, ébola ou febre de Lassa, as autópsias constituem uma esperança para a comunidade médica compreender a covid-19. Espera-se que elas permitam reconstruir o curso natural da doença, porém é um processo longo que requer muito trabalho meticuloso.

 

Tratando-se de uma doença altamente contagiosa, os médicos investigadores têm de evitar espalhar o vírus por via aérea. Para tal, usam instrumentos especiais nas recolhas de tecidos que têm de ser mergulhadas em soluções desinfetantes durante semanas antes de poderem começar a ser estudadas. Cada órgão do corpo tem de seccionado de forma a recolher pequenas amostras de tecido de cada órgão, os quais são posteriormente observados à lente de microscópios diferentes.

 

PULMÕES E CORAÇÃO

 

Uma das primeiras investigações a serem divulgadas logo em 10 de abril veio de Nova Orleães. O médico Richard Vander Heide, que faz autópsias desde 1994, confessou na altura nunca ter visto nada semelhante ao observar um paciente de 44 anos que morrera da covid-19. Ao cortar uma amostra do pulmão, Vander Heide encontrou centenas de milhares de micro coágulos.

 

Apesar de tudo o que ainda não se sabe sobre o comportamento do Sars-cov-2, o estudo de Vander Heide foi prontamente publicado no The Lancet baseado nos casos de dez doentes, e teve impacto no tratamento da covid-19: desde então passou a ser comum prescrever anticoagulantes aos doentes infetados com o vírus.

 

Um estudo do mês passado publicado no eClinicalMedicine do The Lancet dava conta da descoberta de casos de coagulação anormal no coração, rim e fígado bem como nos pulmões, de sete pacientes. Este facto permitiu aos autores do estudo sugerir que pode ser a principal causa de falência múltipla de órgãos em doentes da covid-19.

 

De todas as manifestações do coronavírus, o impacto no cérebro conta-se entre os mais sérios. Os doentes demonstram ter “distúrbios neurológicos incluindo perda de olfato e de paladar, estados mentais alterados, AVC, convulsões e até delírio”, lê-se no “Washington Post”.

 

A patologista Amy Rapkiewicz admite que é demasiado cedo para saber se as recentes descobertas das autópsias poderão vir a ser traduzidas em alterações no tratamento dos doentes da covid-19, porém, a informação recolhida já abriu novas pistas.

 

In "Expresso"