Rita Sá Machado, chefe de Divisão de Epidemiologia e Estatística da Direcção-Geral da Saúde, explica em entrevista ao PÚBLICO que “normalmente, de uma infecção só vemos a ponta do iceberg”.

 

Médica de saúde pública e chefe de Divisão de Epidemiologia e Estatística da Direcção-Geral da Saúde (DGS), Rita Sá Machado explica, em entrevista ao PÚBLICO, que face às evidências e à luz do conhecimento actual, existe imunidade adquirida, mas é cedo para saber a sua duração. Mais importante do que saber números de testes, refere, é saber o número de pessoas testadas e essas são todos os casos suspeitos. Quanto ao que se pode esperar, afirma que ainda é cedo para pensar num regresso à normalidade. Embora tudo indique que as medidas tomadas estão a ter efeito no crescimento dos casos positivos, ainda é preciso esperar para termos mais algumas certezas.

 

Como estão a ser recolhidos os dados do boletim?

 

A nossa pedra basal é o sistema de vigilância epidemiológica, que temos adaptado especificamente para conseguir responder da melhor forma possível à pandemia. O que extraímos do sistema vigilância são dados sempre provisórios ao dia. Vamos fazendo as contagens e as contabilizações com dados que provêem de diferentes fontes de dados: temos os médicos a fazer notificações clínicas, os laboratórios a colocar informação, temos as equipas de saúde publica a colocar informação dos inquéritos epidemiológicos. Há ajustes que são feitos todos os dias à informação que temos acesso e por isso é que existem algumas flutuações que podem ocorrer.

 

Por exemplo, se a uma notificação clínica se tiver associado cartão de utente, o local de residência está associado. Se tiver mudado de residência, passado algumas horas a equipa que está a fazer o inquérito epidemiológico vai dizer que a morada de residência não é no Porto, mas na Maia. Altera o local de residência. Por outro lado, quando o que entra no sistema inicialmente é uma notificação laboratorial, a informação que vem é do local de ocorrência. Quer dizer que é o local onde estamos a fazer o diagnóstico.

 

Não faria mais sentido publicar uma coisa mais completa e com mais certezas?

 

O sistema é automático. O que posso dizer ao sistema é para incluir só a parte da informação clínica. É isso que estamos a fazer: só uma das portas de entrada é que vai, de uma forma segura, colocar informação. Só vai ter cerca de 70% do total dos dados, que é o reverso da moeda. Na minha opinião pessoal, é preferível termos números rigorosos do que estarmos a actualizar mais tarde alguns dados. Sendo que numa epidemia estamos sempre a actualizar dados. É preciso que todos o entendam. Podem existir pequenas flutuações, o que é completamente normal. Só no fim da emergência é que vamos ter os dados completamente correctos de todos os dias.

 

Para que fique claro, que problemas detectaram e o que mudaram?

 

Nós utilizamos a informação do local de residência. Quando essa informação não existe, o sistema por defeito adopta o local de ocorrência e quando esta não existe, o programa adopta por defeito o local de diagnostico. Se o sistema automaticamente vai buscar o local de diagnóstico, vamos ter um maior número de casos numa área especifica do país, que depois no dia seguinte, com a informação do seu local de residência, será colocada nesse local. O que fizemos? Vamos, neste momento, colocar disponível apenas a informação que está com o local de residência.

 

Porque é que o boletim não traz informação sobre o número de testes realizados?

 

Os casos suspeitos foram todos os casos que foram testados. O que é importante aqui é saber o número de pessoas que foram testadas, não é saber quantos testes as pessoas fizeram. O sistema de reporte laboratorial reporta tanto os casos positivos como os negativos. Todos os privados reportam no nosso sistema de vigilância. O que é importante? Os nossos casos suspeitos inicialmente eram os que estavam contemplados na definição de caso. Muitas pessoas que foram, principalmente no privado, testadas eram assintomáticas. Também temos esses dados porque foram reportados. Não estou a dizer que não possa haver alguma informação que não tenha sido incluída.

 

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Tem-se feito uma conta diária para se ter uma ideia de pessoas testadas diariamente, que é fazer a diferença entre casos suspeitos de um dia para o outro. É possível fazer esta conta?

 

Para mim não é um número fiável. Não posso dizer com toda a certeza que o número de testes que foi realizado é subtrair o número de casos suspeitos de um dia por outro, porque alguns podem não ter sido captados logo pelo sistema, são captados umas horas mais tarde. Por exemplo, se o clínico em vez de notificar às 23h os dez doentes que viu, o fizer às 5 da manhã vai haver um atraso na introdução da informação.

 

Não faz sentido trazer no boletim o número de pessoas testadas diariamente?

 

Já percebemos que essa é uma informação que todos querem. Vamos ver se é possível incluí-la no boletim diário. Se não, iremos incluí-la num dos nossos outputs de trabalho que depois pode ser dito. Isso tem acontecido, a directora-geral da Saúde e secretário de Estado da Saúde têm referido alguns destes números nas conferencias de imprensa.

 

É importante saber qual a percentagem de população já testada?

 

Mais importante e é isso que está a ser pensado - Portugal e outros países da Europa em conjunto com a OMS – é fazer rapidamente o inquérito serológico, para perceber qual o grau de imunidade que neste momento a população portuguesa tem ao vírus.

 

Há ideia se se fica ou não com imunidade? E há risco de reinfecção?

 

O que nos tem mostrado a evidência, e isto é à luz do conhecimento actual, é que existe imunidade adquirida, mas não sabemos ainda a duração da imunidade. A reinfecção não está a acontecer, pelo menos é o que a literatura nos diz. O que mostra é que no caso de algumas pessoas que ficaram negativas e depois voltaram a positivar isto pode ter a ver com o que designamos por neurotropismo do vírus. Ou seja, o vírus pode manter-se nas nossas camadas neuronais e por isso pode ser negativo e passado um dia ou dois ser positivo. A evidência da China – ainda não temos evidência da Europa -, é que essas pessoas não transmitiam, não tinham sintomas clínicos.

 

Há alguma indicação de mutação do vírus?

 

Não se percebeu se houve, por exemplo, uma mutação do vírus chinês para o vírus italiano. Os estudos genéticos estão a começar a ser feitos e diria que muito brevemente teremos respostas.

 

O facto de fazermos mais testes leva a uma maior demora para ter resultados?

 

Poderá haver uma sobrecarga dos serviços, mas não posso dizer se há uma demora ou não dos resultados. Com o sistema do Trace Covid poderemos ter essa noção porque é emitida uma requisição do teste, depois sabemos quando há a realização e quando existe um resultado laboratorial. Também temos de olhar para a oferta e para a capacidade que os laboratórios têm para responder a todos os casos suspeitos.

 

Terça-feira houve reunião no Infarmed. Segundo o Observador, os peritos estimaram que podem existir 3000 casos que não estão notificados. Qual é a percentagem de casos estimada que não conhecemos?

 

Normalmente, de uma infecção só vemos a ponta do iceberg. O que contamos são as pessoas que se dirigem aos serviços de saúde, que têm sintomas. Mas existem camadas menos visíveis, que são as pessoas que já tem sintomas e ainda não se dirigiram aos serviços de saúde e as pessoas que ainda não têm sintomas. Nunca, em nenhuma doença transmissível, sabemos 100% o que está acontecer. Por isso existem modelos que estimam quantos mais casos poderá haver e que o sistema ainda não captou. O que foi apresentado foi isso.

 

Mas qual é a estimativa do que não estamos a ver?

 

É um modelo, isto foi muito frisado na sessão. Todos estes modelos têm uma componente de incerteza muito forte. Não me arrisco a dizer nenhum número. Estamos a falar de algo que é conhecimento epidemiológico e de uma sessão que foi importante para os decisores políticos conhecerem algumas das incertezas e daquilo que sabemos que são as fragilidades de toda a informação, quando estamos a falar de uma pandemia e uma doença transmissível.

 

O que é R0, como está agora e o que significa?

 

Em linguagem muito simples é o número básico de reprodução. É um número de quantos casos [de infectados] vamos ter por um caso confirmado, se não estivessem a ser feitas quaisquer medidas. Depois, temos o segundo R que é o R efectivo. Tem a ver com o número de pessoas que neste momento podem ser infectadas com as medidas que já estão a ser incluídas. Neste momento o R0 situa-se um pouco acima de dois. E o R efectivo - que tem descido substancialmente - ainda se encontra acima de um, também de uma forma muito ligeira. Precisamos de ver nos próximos dias se continua a comportar-se da mesma forma. Se continuar, pode mostrar que pode haver sinais de começar a existir um decréscimo no crescimento da incidência da infecção. Não podemos dizer já que está a acontecer. O R0 e o R efectivo são dois bons indicadores, mas precisamos de juntar outras componentes para conseguimos perceber o que está a acontecer.

 

Que componentes?

 

A taxa de incidência global e por concelho, a componente de letalidade e mortalidade, também temos de olhar para a taxa de crescimento. Só no fim da epidemia é que temos a taxa real de letalidade. Até lá, vamos dar uma estimativa. Fazemo-lo para as pessoas entenderem alguma coisa do que estamos a falar, mas só no final da epidemia é que se calcula uma boa taxa de letalidade.

 

Qual é a nossa taxa de incidência neste momento?

 

A taxa de incidência é por concelhos. Pode ir desde o zero, porque temos concelhos que ainda não têm casos, como pode ir até cerca de 350 casos por 100 mil habitantes.

 

Fala-se muito do planalto e do pico que seria em Abril e que agora poderá acontecer no final do Maio. Esta mudança é efeito das medidas que tomámos?

 

A curva, se não fizéssemos nada iria ter o seu componente exponencial. O que tem acontecido, e que temos visto, é que essas medidas têm tido algum impacto. Tem havido uma redução do crescimento. Os modelos e as estimativas têm prolongado o nosso tempo de chegar até esse planalto, até esse pico. Mas diria que só mesmo quando estivermos muito próximos [do pico] é que conseguimos dizer que está previsto para daí a dois ou três dias.

 

Ainda não chegamos aí?

 

Por enquanto ainda não estamos nesse momento. Começamos a ver alguns indicadores que nos trazem algum alento, de que estamos a melhorar e estamos a ter um crescimento menor. Mas ainda não estamos no ponto de viragem total que pretendemos que aconteça.

 

Que é uma percentagem cada vez mais reduzida de novos casos positivos.

 

Exactamente. É uma diminuição da taxa de incidência.

 

Neste momento, os nossos serviços estão capazes de responder à procura e a um eventual acréscimo que possa acontecer nas próximas semanas?

 

Não sou a melhor pessoa para responder a essa pergunta. Mas do ponto de vista da nossa capacidade, ainda não estamos perto de atingir o nosso limite de capacidade. Vemos pelos indicadores, mas só os indicadores aqui não dizem tudo.

 

Olhando para o número de casos positivos, a zona Centro tem uma percentagem maior de mortes do que Lisboa e Vale do Tejo. Não faz sentido fazer uma caracterização de mortalidade por região?

 

Estamos a analisar tudo o que é do âmbito da mortalidade. Quer os óbitos específicos de covid - pessoas que morreram por covid -, as pessoas que morreram com covid - também é um dado importante as pessoas que testaram positivo mas não tinham queixa - e também estamos a olhar para os óbitos respiratórios. Estamos a fazer uma análise de todos os óbitos que ocorrem durante esta época. A análise da mortalidade não se coaduna com fazermos uma análise célere, porque é preciso olharmos para informação clínica detalhada. Mas está a ser feita.

 

Ainda é cedo para ter resultados?

 

Ainda é cedo.

 

Há uma estimativa de quando se poderá regressar à normalidade? O que se perspectiva que possa acontecer a breve trecho?

 

Voltarmos à nossa normalidade, diria que estamos longe disso. Mas podemos é ter alguns rasgos de normalidade. Isso está a ser estudado, para perceber se tivéssemos um rasgo de normalidade em algumas questões o que é que iria influenciar. Temos uma equipa que está a tentar algumas fórmulas para perceber se é possível fazer. Ainda não sabemos.

 

Houve saída de pessoas da Direcção-Geral da Saúde para a reforma. As equipas estão reforçadas, nomeadamente no tratamento de dados e na área epidemiológica?

 

As equipas têm de ser fortalecidas em todos os seus pontos: a nível central, regional e local. Quando se faz esta pergunta só para a DGS estamos a ver uma parte muito ínfima de todo o sistema. Temos de reforçar os diferentes pontos do sistema. A DGS encabeça uma vasta equipa de vigilância epidemiológica e neste caso são várias pontas do sistema. Por exemplo, os indicadores clínicos são alimentados pela parte hospitalar e quem tem de fazer os interfaces são os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Não é só reforçar internamente a DGS que vai melhorar todo o sistema. Não sei dizer se os outros pontos do sistema estão ou não a ser reforçados. Temos feito alguns apelos. Na DGS tem havido um esforço para reforçar.

 

Ana Maia

 

In “Público”