Este modelo alimentar, que nos protege e ao planeta, e que era popular e acessível nos anos 60 e 70 do século passado, corre hoje o risco de se tornar gourmet, elitista e de acesso facilitado a quem tem mais poder económico. O mesmo se poderá passar com a saúde e com a educação de qualidade a breve trecho.

 

“Tenho o maior respeito por estas tradições culturais, mas tenho a maior suspeita sobre a fúria patrimonializadora. É um fenómeno do nosso tempo e significa geralmente que se coloca em estado de congelação um costume, um rito cultural, um edifício ou uma cidade inteira. Parece um gesto de salvação e de reconhecimento, mas muitas vezes é uma certidão de óbito ou, pelo menos, uma condenação à morte.” António Guerreiro in PÚBLICO, 27/12/2019

 

A Dieta Mediterrânea é o nosso património alimentar mais importante. Património imaterial da humanidade, ou seja, reconhecido pela UNESCO como de “valor universal excecional (…) transmitido de geração em geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana”. Tive o privilégio, depois de muitos anos a lutar pela sua afirmação, em integrar a equipa que trabalhou na candidatura portuguesa da Dieta Mediterrânica a Património Cultural Imaterial da Humanidade em 2013 e que foi aprovada por unanimidade, tendo a candidatura sido considerada exemplar pelo Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do PCI da UNESCO.

 

Valeu a pena. Este padrão alimentar amplamente estudado e defendido pela comunidade científica está hoje associado à proteção da saúde. Proteção documentada face às doenças mais prevalentes na população portuguesa como a doença cardiovascular ou certos tipos de cancro, ao melhor controlo glicémico, à redução dos processos inflamatórios e, muito provavelmente, à prevenção de doenças como o Alzheimer. Portugal bem precisa de ganhar anos de vida saudável. Apesar de sermos dos países europeus com maior longevidade (81,3 anos, contra a média europeia de 80,9), somos também um daqueles onde se adoece mais cedo e de forma crónica. A média nacional é de mais seis anos de boa saúde depois dos 65, enquanto a Suécia e a Dinamarca têm mais 12 (mulheres) e mais dez (homens). Ou seja, somos um dos países da Europa ocidental onde se vive por mais tempo doente e em sofrimento. E a alimentação inadequada é, em Portugal, o determinante que mais anos de vida saudável rouba aos Portugueses. Assim nos dizem os números.

 

A defesa da Dieta Mediterrânica em Portugal é, pois, um ideal mobilizador, um modelo de padrão alimentar para a política alimentar nacional ao conjugar a alimentação saudável com a tradição cultural ancestral e, mais recentemente, com a proteção ambiental. Sendo um padrão alimentar de base eminentemente vegetal e que utiliza produtos locais, sazonais e plena reutilização do que sobra, tornou-se facilmente um ideal de sustentabilidade ambiental. Contudo, e apesar deste esforço e reconhecimento, a Dieta Mediterrânica corre sérios riscos de desaparecer no sul da Europa e em todo o Magrebe. Portugal é talvez um dos países europeus que melhor estuda a adesão a este padrão alimentar.

 

Atualmente, apenas 18% dos portugueses parece ter níveis de adesão elevados a esta “dieta”. No caso nacional, os determinantes desta baixa adesão à DM relacionam-se, muito provavelmente, com os custos económicos e sociais de praticar este padrão alimentar. Ou seja, este padrão alimentar exige conhecimento técnico e tempo para comprar, cozinhar e estar à mesa, obriga à compra de produtos frescos e menos processados, obriga à disponibilidade de certos alimentos que são mais escassos nas zonas mais vulneráveis economicamente e obriga ainda a uma distribuição mais equitativa da atividade doméstica para ambos os membros do casal, algo que é relativamente facilitado quando os consumidores têm maior nível educacional e capacidade económica. Este modelo alimentar, que nos protege e ao planeta, e que era popular e acessível nos anos 60 e 70 do século passado, corre hoje o risco de se tornar gourmet, elitista e de acesso facilitado a quem tem mais poder económico. O mesmo se poderá passar com a saúde e com a educação de qualidade a breve trecho.

 

A nova década que se avizinha será um tempo decisivo para este tipo de desafio em muitas áreas. As mudanças climáticas obrigarão a respostas rápidas, desejavelmente com evoluções a partir do passado e da nossa tradição alimentar, mas obrigarão também a outras soluções, algumas radicalmente novas, a começar pelo consumo de insetos, de alimentos produzidos em jardins verticais nas cidades ou, ainda, recorrendo a alimentos de síntese (por ex. a carne) totalmente laboratoriais. Talvez tudo isto temperado com azeite. A defesa da Dieta Mediterrânica não se resolverá por isso pelo caminho da patrimonialização cega, mas sim pela abertura a novas soluções, mantendo a coerência histórica com a sua base frugal, vegetal, sazonal e de igualdade de acesso.

 

Mesmo que não se possa juntar a nós em todas as refeições, a “dieta mediterrânica” é suficientemente resiliente para nos ensinar a sobreviver. Será uma alimentação feita de engenho e adaptação, muito provavelmente de base vegetal e com novos alimentos a chegar, alguns deles exóticos e mesmo estranhos para o nosso paladar. Tal como foi o tomate, considerado venenoso no séc. XVI quando cá chegou, ou a batata, que só no séc. XVIII foi considerada segura para os seres humanos.

 

A Dieta mediterrânica não será uma espécie em extinção na próxima década, mas apenas um modo de comer em evolução. Assim o esperamos.

 

Pedro Graça

 

Director da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto; ex-director do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direcção-Geral da Saúde

In "Público"