Em março de 2015, um piloto de uma companhia aérea alemã despenhou propositadamente um avião nos Alpes Franceses, num homicídio-suicídio em que morreram 200 pessoas.

 

No seguimento, uma das linhas de análise sobre o acontecimento foi a de que Andreas Lubitz estaria deprimido, o que imediatamente levou a apelos de várias instituições para que não se assuma que pessoas com depressão iriam agir de forma semelhante. Mais recentemente, e felizmente já no plano da ficção, tem existido muito debate em torno do filme Joker (de Todd Phillips, com uma brilhante interpretação de Joaquin Phoenix), entre outros, sendo estabelecida uma perigosa causalidade entre doença mental e comportamento violento. Além da discussão que geraram sobre as alterações no funcionamento, ambos os exemplos remetem para uma questão que necessita ser melhor clarificada: existe uma relação entre perturbações psicológicas e comportamento violento? Isto é, serão as pessoas com perturbações psicológicas mais propensas a comportamentos violentos? Ou ainda, os comportamentos violentos podem ser explicados pela doença mental?

 

Quando assistimos a atos significativos de violência, sobretudo aqueles mais impressionantes, temos frequentemente tendência para concluir que, “se fez aquilo, então devia ter alguma doença mental”. Mas, na verdade, a explicação do comportamento violento ou da violência em massa a partir da doença mental é enganadora e até distorcida. É certo que as pessoas que cometem atos violentos ou terríveis têm problemas que os levaram a agir assim; mas, na generalidade dos casos, não foi uma eventual perturbação psicológica que causou o problema. Como sabemos isto? Basta atentarmos aos dados disponíveis. Por exemplo, nos Estados Unidos, sabe-se que menos de 5% dos crimes violentos são atribuíveis a doenças mentais. As estatísticas do crime violento no Reino Unido encaminham-se no mesmo sentido: face ao número estimado de 7 milhões de pessoas com perturbações psicológicas naquele país, verifica-se que somente entre 50 a 70 casos de homicídio envolvem pessoas com perturbação na ocasião do crime. E mesmo em relação à violência do dia-a-dia, os dados mostram que pacientes que tiveram alta psiquiátrica nos EUA não se distinguiam da restante vizinhança em relação a registos de violência (MacArthur Violence Risk Assessment Study).

 

Na verdade, os atos violentos são melhor caracterizados quando se consideram fatores de risco de natureza social e demográfica, como por exemplo, agressões anteriores, consumos de substâncias, adversidades, negligência e mau trato na infância, desespero, dificuldades financeiras, e ainda outras características de personalidade, em que se incluem o narcisismo, a dificuldade do controlo dos impulsos, ou sentimento de raiva. Alguns destes fatores podem inserir-se em perturbações de personalidade, como a psicopatia ou a sociopatia, mas fatores de risco não é o mesmo que uma perturbação psicológica diagnosticável. Por exemplo, o abuso de substâncias é um determinante da violência e isto é verdade independentemente de ocorrer de uma perturbação psicológica ou não.

 

Dito de outra forma, a generalidade das pessoas com depressão, perturbações bipolares, ansiedade, stress pós traumático, esquizofrenia, perturbações do comportamento alimentar, entre outras, não exibem comportamento violento, particularmente na ausência dos fatores de risco atrás mencionados. Em suma, não é a perturbação psicológica per se que leva ao comportamento violento, mas os envolventes sociais em que a pessoa se encontra. Por isto mesmo, é necessário compreender a natureza da interligação social que leva ao comportamento violento. Temos de saber mais sobre a natureza destas relações e sobre como o contexto em que cada um de nós se encontra pode ou não favorecer a violência, o que nos permitirá atuar ao nível da prevenção primária, por exemplo, na comunidade, na família, na escola ou nos locais de trabalho.

 

Sobretudo ao nível da realização e do desempenho do protagonista, o filme de que todos falam - o Joker - é um trabalho de entretenimento e de grande qualidade cinematográfica. Tem também o mérito de acionar um debate em torno da saúde e da doença psicológica. Que não se diminua a qualidade cinematográfica e de entretenimento do filme, extraindo relações simplistas de causa efeito entre doença mental e comportamento violento. Mais do que pensarmos “se fez aquilo então é porque é doente”, devemos refletir sobre o que acontece antes de tudo isso - quais são as condições relacionais, institucionais e sociais que são fatores de risco e que levam a que aconteçam os problemas. Até porque é bem mais possível que uma pessoa com perturbação psicológica seja uma vítima de violência e não tanto um agressor.

 

RENATO GOMES CARVALHO

 

Presidente da Delegação Regional da Madeira da Ordem dos Psicólogos Portugueses

 

 

 

In “JM-Madeira”