Trabalhar “em conjunto” para prevenir o suicídio é o lema este ano do Dia Mundial da Saúde Mental, que se assinala esta quinta-feira, 10 de outubro, e os meios de comunicação não só não devem ficar de fora como têm uma responsabilidade especial.

Deviam “falar mais” sobre o assunto em vez de apenas noticiar suicídios concretos e, mesmo nesses casos, fazê-lo bem, respeitando as recomendações internacionais. Entrevista com Sónia Farinha Silva, médica interna do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo.

 

Volta e meia são divulgados números de suicídios, mais lá fora do que em Portugal, noticiam-se casos de celebridades ou, aproveitam-se as efemérides para falar sobre o assunto (precisamente como fazemos esta quinta-feira, 10 de outubro, Dia Mundial da Saúde Mental), mas isso não é suficiente. A avaliação é de Sónia Farinha Silva, médica interna do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e uma das responsáveis pelo projeto “Setembro Amarelo: Mês da Prevenção do Suicídio”, implementado na região do Alentejo e premiado em concursos.

 

Em entrevista ao Expresso, não só defende que os meios de comunicação deviam falar mais e de forma adequada sobre suicídio — respeitando as recomendações da Organização Mundial da Saúde para não dar azo aos tão temidos comportamentos de imitação e dando voz às pessoas que “pensaram em suicidar-se mas recuperaram” — como avança as áreas prioritárias do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, que será relançado este ano mas não na sua totalidade. “Era para ter sido implementado entre 2013 e 2017 mas isso não aconteceu, por isso não vale a pena sermos demasiado ambiciosos.” Em 2017, a taxa de mortalidade por lesões autoprovocadas intencionalmente (ou taxa de suicídio) foi de 10,2 por 100 mil habitantes, ligeiramente acima da registada no ano anterior (9,5), segundo números do Instituto Nacional de Estatística. Morreram por suicídio, em 2017, 1050 pessoas (779 homens e 271 mulheres). Entre os jovens o valor foi o mais alto da década.

 

Num debate no ano passado sobre a prevenção do suicídio, no âmbito do Festival Mental, afirmou que os meios de comunicação deveriam falar mais suicídio. Porquê?

 

Os meios de comunicação também têm um papel na prevenção do suicídio no que diz respeito à divulgação de informação sobre o assunto. Os jornalistas deveriam falar mais sobre o que é a doença mental e a depressão. O suicídio é um fenómeno multifatorial, não tem apenas uma causa, mas sabemos que 90% das pessoas que se suicidam tinham doença mental, sendo a depressão a mais prevalente. A literacia em saúde no nosso país é fraca e, sendo os media um dos principais veículos de divulgação de informação, creio que poderiam desempenhar um papel mais ativo nesse sentido. Suponho que não o façam porque há aquele mito de que se falarmos sobre suicídio, estamos de certa forma a incentivá-lo. Algo que, obviamente, não é verdade.

 

Creio que há o receio do chamado “efeito de Werther”, em que um suicídio noticiado pelos media pode levar a comportamentos de imitação.

 

Há sempre os dois extremos — ou não se fala ou fala-se mas de forma errada. O suicídio por imitação é uma realidade, há vários estudos sobre isso, mas não está relacionado as notícias sobre suicídios ou sobre o tema. Tem que ver com a forma como se fala e precisamente por isso existem regras que devem ser cumpridas. Se o forem, não precisamos de estar preocupados com os suicídios por imitação.

 

A Organização Mundial de Saúde disponibilizou um manual para jornalistas com essas regras.

 

É a essas regras que me refiro. Os jornalistas não devem apenas noticiar suicídios mas antes aproveitar esses casos para trazer o assunto à discussão e até dar voz a pessoas que já viveram momentos complicados mas depois recuperaram. Pessoas que pensaram em suicidar-se mas depois houve uma viragem nas suas vidas e não o fizeram. É bom dar estes exemplos positivos e é também uma forma de falar sobre suicídio.

 

Porque, na sua opinião, os meios de comunicação não falam tanto sobre suicídio quanto deveriam? Por acharem que não devem, não saber como fazê-lo ou porque o tema continua a ser tabu?

 

Diria que acontecem duas coisas. Por um lado, os jornalistas têm medo dos tais suicídios por imitação e acham que estes vão acontecer só pelo facto de se falar sobre o assunto. Talvez ainda não percebam bem o que é exatamente este fenómeno. Mas isto não acontece só com jornalistas. Os próprios profissionais de saúde têm, muitas vezes, dificuldade de perguntar à pessoa que têm diante de si se está a pensar suicidar-se, se tem algum plano para isso. Acham que isso é o mesmo que dar ideias, incentivar, o que é errado. E não se sentem confortáveis em relação ao assunto. Quando pergunto a um doente se quer suicidar-se, ele até se sente mais aliviado por sentir-se à vontade para expressar essa vontade. É preciso dar abertura às pessoas para falar. Continua a haver um grande estigma em relação à doença mental.

 

Como é que se pergunta isso a um doente?

 

Da forma mais direta possível, com sensibilidade e, sobretudo, sem qualquer julgamento. É perguntar, ouvir e dizer: “Certo, então vamos falar sobre isso”. Pensar em suicídio deve ser algo aterrador, vai contra os nossos instintos, mas muitas vezes as pessoas adoecem e ficam com uma espécie de visão em túnel. Acreditamos que, se ajudadas, podem acabar por não o fazer. Em última instância, as pessoas não querem suicidar-se, simplesmente não veem outra saída naquele momento, estão desesperadas. Oferecer ajuda é dar mais uma oportunidade à pessoa para escolher não morrer.

 

Que tipo de abordagem recomendaria aos jornalistas que pretendem falar sobre o suicídio?

 

Há várias abordagens, mas creio que seria útil e importante informar as pessoas sobre os fatores de risco da depressão e os sinais de alarme em relação ao suicídio. E, como referi há pouco, incluir testemunhos de pessoas que passaram por essa situação e superaram-na. É preciso desmistificar alguns mitos que existem em relação ao suicídio.

 

Tais como?

 

É frequente ouvir-se dizer que as pessoas que ameaçam que vão suicidar-se estão apenas a tentar chamar a atenção. Ou que a depressão é coisa de pessoas preguiçosas e frágeis, fracas. Acontece também o suicídio ser associado a uma causa quando, na verdade, tem múltiplas. Vê-se isso em meios de comunicação, esse esforço de interpretar e esgravatar determinada morte, sobretudo se a pessoa em causa for conhecida. É preciso especial atenção a esses casos, porque pode haver pessoas que muito vulneráveis, e até se identificam com essa celebridade, e acham que o suicídio pode ser mesmo uma solução.

 

Nesse debate, afirmou também que quando os media falam sobre suicídio não cumprem essas tais recomendações da OMS que se evite descrições explícitas sobre o método utilizado. São recomendações como esta que considera não estarem a ser respeitadas?

 

Não essa em específico, mas tenho-me apercebido de que muitas vezes não são incluídas as linhas de apoio e prevenção do suicídio nos artigos sobre o assunto, como recomenda a OMS. Quando Anthony Bourdain morreu, li várias notícias na imprensa internacional e reparei que esses contactos apareciam sempre no final, mas em Portugal isso não aconteceu. Na maioria das notícias que li não tinha havido esse cuidado. Portanto, é como lhe disse: ou não se fala ou, quando se fala, não se cumprem as regras básicas. Já houve até casos em que foram publicadas fotografias do local onde a pessoa se suicidou, algo que a OMS desaconselha fortemente.

 

Também é desaconselhado o uso de expressões como “cometer suicídio”, não é verdade?

 

Sim, a questão das expressões também é muito importante mas tende a ser subvalorizada. E está não só relacionada com o estigma da saúde mental e do suicídio, contribuindo para que este seja ainda mais forte, como com um certo apelo sensacionalista e juízos de valor. Por exemplo, não é correto dizer “cometeu suicídio”, porque nos leva logo para a analogia com “cometer um crime”, o que de forma subtil ‘condena’ à partida a pessoa em questão; ou “suicídio bem sucedido”, que é obviamente desadequado uma vez que a morte por suicídio não é algo de positivo. Em termos de terminologia, quando se fala destas coisas o mais correcto é mesmo dizer “morte por suicídio”. Repito: o problema não está na temática, mas sim na forma como o suicídio tem sido apresentado e retratado pelos media.

 

 “Educar o público sobre o suicídio” é outra dessas recomendações da OMS para jornalistas. Como é isto pode ser feito?

 

Se se fala tanto de problemas de saúde pública como a hipertensão e a diabetes, porque é que não se há de falar sobre doenças mentais, nomeadamente a depressão? Umas não são menos doenças do que outras, mas acabam por ser vistas de maneira diferente e isso tem consequências. Ao não se conhecer sinais e sintomas, pode-se deixar arrastar a situação. As próprias pessoas têm muitas dificuldades em admitir que estão doentes, daí ser tão importante ter pessoas a partilhar a sua experiência, até para mostrar que essa dor, apesar de não ser visível nos exames, é comum e é real.

 

A sociedade portuguesa está preparada para conhecer esses testemunhos e essas histórias contadas na primeira pessoa?

 

Porque não? Quer dizer, se ouvimos pessoas falar todos os dias sobre coisas más que lhes aconteceram, por que razão não podemos ouvi-las falar da sua superação? Antes também não se falava sobre o cancro da mama, havia um certo tabu em relação a isso, mas depois surgiram figuras públicas a contar que tinham cancro e começou a falar-se sobre o assunto e hoje em dia já ninguém se lembra de que antes não se falava e as pessoas que padecem da doença recebem muito mais apoio. Conhecer histórias nas quais nos revemos dá um certa força, esperança, não é?

 

OS QUE FICAM

 

Durante o debate no festival, também se falou sobre os familiares das pessoas que se suicidam, e do estigma e incompreensão de que são vítimas. Como é que estes familiares e amigos são vistos pela sociedade?

 

Nós chamamos a essas pessoas os sobreviventes...

 

Porquê?

 

Foi a designação que lhes foi atribuída e que consta do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio. Quis-se uniformizar conceitos para estarmos todos em sintonia. Por um lado, estas pessoas sentem-se muito culpadas por aquilo que aconteceu. Estão de luto, mas é um luto diferente dos outros, precisamente por envolver tanta culpa, e também raiva em relação à pessoa que se suicidou. Acham que podiam ter feito algo, que deviam ter percebido mais cedo, e quem está à sua volta, na verdade, pensa o mesmo — que a família devia ter percebido, ter ajudado, mas desleixou-se. Estes pensamentos geram-se com muita facilidade e também isto é o resultado de toda esta desinformação que existe em relação ao suicídio. Precisamos de entender isto: a morte por suicídio é uma morte por doença. Havia uma depressão que não foi tratada e teve aquele desfecho. Ainda em relação aos familiares, muitas vezes sentem vergonha e preferem ocultar a verdadeira razão da morte. Portanto, quando falamos de prevenção, além de tentarmos chegar às pessoas que estão doentes, também podemos e devemos tentar chegar a todas as outras.

 

Já referiu várias vezes a questão do estigma. Quais as vias mais eficazes para ‘atacá-lo’?

 

A escola é muito importante. Da mesma maneira que são abordadas temáticas como o tabagismo e o HIV/SIDA, também se deveria falar sobre doenças mentais. Também nos cuidados de saúde primários, que o sítio primordial da prevenção de todas as doenças, é importante que se fale mais sobre isto. Tanto os médicos de família como os restantes porteiros sociais, isto é, pessoas que pertencem a grupos que estão em contacto com a população, como é o caso dos polícias, farmacêuticos, funcionários de restaurantes e cafés, etc., têm um papel muito importante nisto.

 

PLANO NACIONAL DE PREVENÇÃO DO SUICÍDIO VAI SER IMPLEMENTADO SÓ EM PARTE. “NÃO VALE A PENA SERMOS DEMASIADO AMBICIOSOS”

 

Durante a conversa no festival, falou sobre o Plano Nacional de Prevenção de Suicídio, o qual, segundo disse, “nunca terá sido posto em prática”. Quais são as principais medidas deste plano?

 

Antes de mais, é importante salientar que se trata de um plano excelente, elaborado por psiquiatras e outros especialistas. Era para ter sido implementado entre 2013 e 2017, mas isso não aconteceu e, portanto, será relançado este ano, mas não na sua totalidade. Foram definidas cinco áreas prioritárias ou prioridades: o lançamento de uma campanha nacional de prevenção de suicídio, acesso a meios letais, grupos de risco, que incluem os jovens, os idosos e as forças de segurança, formação e uma melhoria substancial dos sistemas de informação. Não vale a pena sermos demasiado ambiciosos e achar que vamos conseguir implementar em breve todo o plano.

 

Também acha que essas áreas são as mais importantes?

 

Sim, não foi por acaso que foram escolhidas. No caso dos grupos de risco, sabemos que em Portugal são os homens com mais de 65 anos quem mais se suicida. Temos uma população muito envelhecida. O Alentejo é a região onde há mais suicídios e onde vivem sobretudo idosos isolados com pouco acesso a cuidados de saúde. A aposta nos idosos tem que ver com isso, e o mesmo se passa com os jovens. O número de mortes por suicídio nessa faixa etária é substancial, e depois há também outras questões relacionadas com os comportamentos autolesivos.

 

Porque é que o plano foi mantido na gaveta durante os últimos anos?

 

Honestamente não tenho uma resposta para lhe dar, até porque eu própria também não sei e gostaria de saber. O assunto nunca esteve na agenda política, assim como não tem estado a saúde mental no geral, cujo plano também ainda não foi implementado [o Programa Nacional para a Saúde Mental foi redigido em 2007, e além de ter sido interrompido nos anos da troika, continua em larga medida por implementar, conforme admitiu já ao Expresso um dos seus autores, da Direção-Geral de Saúde]. A saúde mental ainda não tem um lobby forte a nível político. Algo que, para mim, é completamente incompreensível. Numa sociedade que se dá tanta importância ao trabalho, como se espera que as pessoas continuem a trabalhar e a ser produtivas se não valoriza uma coisa tão básica quanto a saúde mental? Continua-se a fechar os olhos ao assunto.

 

Quais as consequências de este plano não ter sido implementado? Ana Matos Pires, consultora da DGS para a saúde mental, admitiu numa entrevista que “o que foi perdido não será recuperado”.

 

Este plano foi elaborado com objetivos concretos, nomeadamente o de diminuir o número de suicídios em Portugal. Não tendo sido implementado, continuamos com os mesmos números, e não fomos também capazes de resolver a questão do estigma do suicídio e da saúde mental em geral.

 

Houve um aumento dos suicídios nos últimos anos?

 

Não sei responder em concreto, mas sabemos, por exemplo, que o número de mulheres que se suicidam tem aumentado. Até há pouco tempo, as mulheres faziam mais tentativas mas morriam menos mas esse padrão tem mudado. Isso está relacionado com os métodos a que recorrem, hoje em dia mais letais.

 

Alguma explicação para isso?

 

Não sabemos ainda. Teríamos de estudar o fenómeno, mas a investigação sobre suicídio em Portugal é ainda muito escassa.

 

LINHAS DE APOIO E DE PREVENÇÃO DO SUICÍDIO EM PORTUGAL

 

SOS Voz Amiga

 

(16h00 às 24h00, todos os dias, incluindo fim de semana)

 

21 354 45 45

 

91 280 26 69

 

96 352 46 60

 

Telefone da Amizade

 

22 832 35 35

 

Escutar - Voz de Apoio – Gaia

 

22 550 60 70

 

SOS Estudante

 

(20h00 à 1h00)

 

969 554 545

 

Vozes Amigas de Esperança

 

(20h00 às 23h00)

 

22 208 07 07

 

Centro Internet Segura

 

800 21 90 90

 

Conversa Amiga

 

808 237 327

 

210 027 159

 

Telefone da Esperança

 

222 030 707

 

 

 

In “Expresso”