Investigadores estimam que, em Portugal e durante 2015, a poluição do ar tenha causado 15 mil mortes, ou seja, 138 mortes por cada 100 mil habitantes. Problemas cardiovasculares provocam quase um terço dos óbitos, mas os cardiologistas alertam que as pessoas não estão conscientes do problema.

Afinal, a poluição do ar pode ser responsável por mais mortes do que aquelas que a Agência Europeia do Ambiente (EEA, na sigla inglesa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimavam. Em Portugal, as estimativas dos cientistas apontam para cerca de 15 mil mortes provocadas pela inalação de partículas finas e outros poluentes, em 2015. As estimativas anteriores, da EEA, indicavam que seriam 6690 também nesse ano. A conclusão é de uma investigação, publicada a 12 de Março no European Heart Journal, e desenvolvida pelo Instituto Max Plank de Química e a Universidade Médica de Mainz (ambos na Alemanha).

 

O trabalho, noticiava o PÚBLICO na semana passada, mostrou que a mortalidade relacionada com a contaminação do ar na União Europeia — 659 mil pessoas — também corresponde ao dobro da estimada em estudos anteriores. O PÚBLICO foi tentar esclarecer o que se terá passado em Portugal.

 

O número agora calculado para Portugal equivale a 138 mortes por cada 100 mil habitantes. Entre os países europeus, Portugal está no meio da tabela. É na Bulgária que o número de mortes é maior (210 por cada 100 mil habitantes). Na Islândia, o impacto da poluição do ar é menor: são 43 mortes em cada 100 mil habitantes.

 

Para chegar a estas estimativas, os investigadores utilizaram um modelo de dados que simula a forma como certos processos químicos atmosféricos interagem com a terra, os oceanos e a biosfera, bem como o impacto dos compostos químicos gerados por actividades humanas, como a indústria ou a agricultura. Os números sobre o impacto da poluição na mortalidade são tão elevados que os investigadores estimam que a contaminação do ar cause mais mortes adicionais por ano do que o tabaco.

 

Ao PÚBLICO, o co-autor do estudo Thomas Munzel, da Universidade de Mainz, explica que a utilização de “uma base de dados mais sólida” e mais informação sobre as “doenças não-comunicáveis, como a diabetes ou a hipertensão”, são os factores responsáveis “pelas estimativas terem subido tanto”.

 

Na Europa, as mortes provocadas por doenças cardiovasculares associadas à poluição do ar representam uma proporção significativa do total (são cerca de 40%) — as restantes estão relacionadas com problemas respiratórios como doença pulmonar obstrutiva crónica, pneumonia ou cancro do pulmão, e outras doenças não-comunicáveis. Mas há diferenças significativas de país para país. Em Portugal, os problemas cardiovasculares, como ataques ou paragens cardíacas, representam 30% do total de mortes causadas pela poluição do ar. Já na Estónia, por exemplo, são 64%.

 

Partículas finas são o problema

 

Os peritos focaram-se sobretudo nos danos causados pelas chamadas partículas finas — que têm um diâmetro inferior a 2,5 micrómetros (mais de 20 vezes inferior à espessura de um cabelo) —, mas também incluem o dióxido de azoto e o ozono nas suas contas.

 

O responsável pela associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira, descreve estas partículas como “um conjunto de substâncias muito diversificado”. São “nitratos, sulfatos, compostos orgânicos”.

 

Foi demonstrado que as partículas finas “levam ao aumento do stress oxidativo por meios surpreendentemente semelhantes” aos que resultam em disfunção vascular associada à diabetes e à hipertensão, lê-se no estudo. “Portanto, parece que a poluição do ar desencadeia ou agrava outras doenças não-comunicáveis que podem contribuir significativamente para as mortes relacionadas com doenças cardiovasculares”, argumentam os autores.

 

Há “alguns estudos que mostram que as pessoas que são sujeitas a mais poluição, a uma maior concentração de partículas nocivas, têm maior risco de diabetes e hipertensão”, explica o cardiologista e secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), José Ferreira Santos​. Por isso, admite, “talvez o gatilho que leve a um aumento da mortalidade seja um aumento também dos próprios factores de risco”. “Alguns estudos também mostram que há um aumento da disfunção do endotélio, há mais constrição das artérias, mais inflamação... Há aqui uma base de fisiopatologia que justifica o aumento desta mortalidade.”

 

É por tudo isto que, neste estudo, os próprios investigadores chamam a atenção para a necessidade de reduzir a concentração destas partículas no ar. Um primeiro passo será baixar o limite máximo permitido na União Europeia, de 25 microgramas por metro cúbico (o actual), para 10 microgramas, o valor recomendado pela OMS. Como? Em 2017, Steven J. Davis, um investigador da Universidade da Califórnia, que também tem trabalhado na relação entre a inalação de partículas finas e a mortalidade, explicava ao PÚBLICO que “há tecnologias avançadas para controlar a poluição do material particulado de 2,5 micrómetros vindo de centrais eléctricas, fábricas, camiões e carros”. O problema, apontava, é que “os custos disto tornam os bens mais caros e enfraquecem o crescimento económico nos países em desenvolvimento, o que leva à transferência da produção para outros países que têm menos restrições ambientais.”

 

Pelo menos em Portugal, a “tendência é para melhorar esse limite”, diz Francisco Ferreira. Se bem que nem tudo seja controlável. “Além da poluição associada à actividade humana, estamos a ser influenciados por partículas que vêm do Sara”, explica o especialista. Até agora, “pensava-se que a fracção de areia que vinha do deserto era mais grosseira (entre 2,5 e 10 micrómetros)”, mas as análises recentes têm mostrado uma quantidade “expressiva” destas partículas.

 

Um aspecto positivo deste trabalho é que pode ser usado para “fazer pressão em termos políticos” e exigir que estes valores sejam revistos, diz Thomas Munzel, co-autor do estudo, ao PÚBLICO.

 

Vidas poupadas

 

Mas nem tudo é catastrófico. Os autores do estudo também calcularam qual seria o impacto da redução das partículas finas no ar na redução da mortalidade associada a problemas cardiovasculares, respiratórios e outras doenças não-comunicáveis. E há boas notícias. A serem tomadas as medidas necessárias para que a temperatura da Terra não aumente mais do que dois graus Celsius (compromisso estabelecido no Acordo de Paris), o excesso de mortalidade causado pela poluição diminui 55%. Em Portugal, isso equivale a menos 3470 mortes.

 

Outro benefício deste cenário: a esperança média de vida na Europa aumenta 1,2 anos. “A transição de combustíveis fósseis para fontes de energia limpa e renovável é uma intervenção altamente eficaz na promoção da saúde”, sublinham os autores.

 

A Alemanha, a Ucrânia, a Polónia e a Itália são os países onde mais vidas seriam poupadas caso esse tipo de medidas fossem adoptadas.

 

Falta informação

 

E se é óbvio para a maioria das pessoas que a inalação destes poluentes pode causar problemas respiratórios, não pode dizer-se o mesmo sobre o seu impacto a nível cardiovascular. É algo que “ainda não está na cabeça das pessoas nem dos médicos”, diz o cardiologista José Ferreira Santos.

 

O presidente do Colégio de Cardiologia da Ordem dos Médicos, Miguel Mendes, é da opinião de que “as pessoas não estão alerta”. Também “não se pode ser alarmista, tem de se ser sensato”. Mas deve haver “consciência de que isto é um problema e que se as sociedades não se precaverem vai aumentar.” Mesmo assim, lembra que “a mortalidade por doença cardiovascular tem vindo a diminuir” em Portugal.

 

O conselho deixado pelos dois médicos é o de evitar, tanto quanto possível, a exposição ao ar poluído. “Quem já​ tiver uma doença cardiovascular deve evitar andar exposto, ou fazer exercício físico vigoroso nos locais onde os níveis de poluição sejam mais elevados”, avisa José Ferreira Santos. “Andar no meio de uma cidade, à hora de ponta, quando o trânsito é intenso, pode ser uma forma de precipitar um evento cardiovascular em alguém que tenha um coração fragilizado.”

 

O médico Miguel Mendes também lembra que “há estudos que dizem que se anula completamente o benefício do exercício físico se o praticarmos no meio do trânsito”. “Temos de ter medidas nas cidades para medir e depois controlar a poluição”, defende.

 

Estudo revela que poluentes agravam risco cardiovascular em doentes hipertensos

 

A exposição a poluentes agrava o risco cardiovascular em doentes que já têm outros factores de risco, mesmo quando já estão em tratamento, revela um estudo desenvolvido por investigadores do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS).

 

O estudo do CINTESIS, a que a Lusa teve acesso, analisou a influência dos poluentes orgânicos persistentes (POPs), como o pesticida DDE, no perfil cardiometabólico e inflamatório de uma população de mulheres pré-menopausa, obesas e hipertensas.

 

Os poluentes orgânicos persistentes são substâncias derivadas sobretudo de actividades industriais, podendo contaminar o ar, o solo e água. São ou foram usados como pesticidas, ingredientes de produtos industriais, domésticos e de cuidado pessoal e plastificantes, por exemplo.

 

No ser humano, a exposição a estes contaminantes ocorre sobretudo através da alimentação, mas também através da inalação ou exposição dérmica, existindo uma acumulação preferencial no tecido adiposo.

 

Neste estudo, os cientistas recolheram amostras de sangue, de tecido adiposo visceral e de tecido adiposo subcutâneo de um total de 43 mulheres no momento da cirurgia bariátrica. Estas foram depois comparadas com um grupo de mulheres obesas, mas que não eram hipertensas.

 

De acordo com esta investigação, as concentrações de poluentes eram significativamente mais elevadas nas mulheres obesas e hipertensas do que nas mulheres obesas, mas sem hipertensão. Nas mulheres com obesidade e hipertensão, o risco cardiovascular estava sempre aumentado, independentemente da existência de tratamento.

 

Estes dados sugerem que “a acumulação de poluentes no tecido adiposo visceral e no sangue implica um risco aumentado de sofrer um evento cardiovascular, como um enfarte do miocárdio, doença coronária, insuficiência cardíaca ou acidente vascular cerebral, mesmo quando se toma medicação para baixar a pressão arterial”.

 

Em consequência, “a análise da concentração de poluentes no tecido adiposo visceral poderá ser útil para detectar os doentes em maior risco e para antecipar o tratamento farmacológico”, defende Conceição Calhau, investigadora principal na área de Nutrição do CINTESIS e docente na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.

 

“Temos assistido ao interesse crescente da sociedade para os efeitos da exposição a poluentes. Apesar de o uso de muitos POPs ter sido banido, a sua presença no ambiente e nas populações continua a ser uma realidade, muito devido às características de persistência e de bioacumulação deste grupo de poluentes. É impossível escapar completamente à exposição, pelo que o foco de actuação deverá passar pela prevenção, monitorização e pesquisa de efeitos na saúde”, alertam os autores.

 

Para além da especialista em Metabolismo e Toxicologia Conceição Calhau, integraram este estudo os investigadores do CINTESIS, Ana Ferro, Diana Teixeira, Diogo Pestana, Cristina Santos e Jorge Polónia.

 

Rita Marques Costa

 

In “Público”