Resultados de um estudo epidemiológico do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto contrariam a norma encontrada na Europa Ocidental. Elevado número de casos de hipertensão é uma das explicações para o invulgar padrão português.
Quando se fala em demência vascular é comum partir-se do princípio de que se trata da segunda forma mais comum de demência, logo a seguir à doença de Alzheimer. Um estudo de uma equipa do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto vem agora contrariar esta ideia. Após uma avaliação que envolveu 730 pessoas com mais de 55 anos, os investigadores concluíram que “os portugueses são mais afectados por demência vascular do que por Alzheimer”. A explicação estará no elevado número de hipertensos e de acidentes vasculares cerebrais (AVC), mas a boa notícia é que esta forma de demência pode ser evitada com uma mudança no estilo de vida.
Os estudos epidemiológicos sobre a demência são muito caros e, por isso, muito raros. Normalmente, a questão resolve-se com uma extrapolação a partir das médias europeias, porém, o estudo agora divulgado mostra que o simples exercício de matemática pode revelar-se perigoso. Sabemos que a demência constitui a expressão clínica de várias patologias diferentes e que a que resulta da doença de Alzheimer é a mais prevalente, sendo que a maioria dos manuais refere que é responsável por 50 a 70% dos casos. Sabemos também que tanto a incidência (número de novos casos) como a prevalência (total de casos num determinado período) da demência aumentam quase exponencialmente com a idade, duplicando aproximadamente a cada cinco anos. Tudo isto parece continuar a ser verdade com uma excepção.
Um estudo publicado no final de 2018 na revista American Journal of Alzheimer’s Disease & Other Dementias mostra que, em Portugal, a demência vascular ultrapassa a que resulta da doença de Alzheimer. O trabalho avaliou a prevalência de défice cognitivo e demência e conclui que a demência vascular tem uma prevalência de 52%, seguida da que é causada pela doença de Alzheimer com apenas 36,1%. Os resultados mostram ainda que cerca de 4,5% dos indivíduos com mais de 55 anos têm demência ou défice cognitivo ligeiro. Um dos raros estudos epidemiológicos sobre o declínio cognitivo e a demência na população portuguesa data de 2003 e aponta para uma prevalência de 2,7% da demência em indivíduos com idades compreendidas entre os 55 e os 79 anos.
A demência vascular é um termo amplo que é usado para caracterizar uma forma de demência associada a problemas da circulação do sangue para o cérebro, sendo que existem vários tipos. Geralmente, esta demência chega devagarinho e de forma silenciosa. Muitas vezes, as vítimas de défice cognitivo e demência deste tipo sofreram vários pequenos acidentes vasculares cerebrais que passaram despercebidos (o chamado AVC isquémico lacunar), sem qualquer sintoma evidente. O diagnóstico é, por isso, difícil. Não é preciso um estrondoso AVC para que sejam causados danos.
Neste estudo foram avaliados 730 indivíduos do projecto EPIPorto, que analisa há 18 anos uma amostra da população adulta residente no Porto representativa da população portuguesa. Os participantes passaram por uma série de etapas, desde exames a consultas com neurologistas, esclarece Luís Ruano, primeiro autor do artigo e investigador na Unidade de Investigação em Epidemiologia do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
É possível prevenir
A conclusão de que o tipo de demência mais prevalente em Portugal é a vascular e não a causada por Alzheimer, contrariando assim a tendência verificada na maior parte dos países ocidentais, não foi, no entanto, uma surpresa. “É algo que, enquanto clínicos, já suspeitávamos que se passava em Portugal. Esperava-se que a demência vascular no nosso país tivesse um peso desproporcional em relação ao resto da Europa”, refere o investigador, que também é médico no Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga (em Santa Maria da Feira). Porquê? Pelo que vem antes disso, explica o especialista. “Isto está ligado inevitavelmente à questão da prevalência do acidente vascular cerebral, que aumenta o risco de demência vascular. Portugal é o país da Europa que tem a mais elevada prevalência de AVC.” Uma realidade que, por sua vez, está ligada aos muitos casos de hipertensão arterial na população e que, por sua vez, está ligada ao consumo excessivo de sal, entre outros maus hábitos.
De acordo com o documento Retrato da Saúde 2018, divulgado pelo Ministério da Saúde, a hipertensão arterial afecta 36% dos portugueses entre os 25 e os 74 anos. “É mais prevalente nos homens do que nas mulheres e aumenta com a idade, afectando mais de 71% dos portugueses na faixa etária dos 65-74 anos.” Portugal tem uma das mais elevadas prevalências de hipertensão arterial na Europa (três em cada dez portugueses), sendo o principal factor de risco de patologia cardiovascular, com relevo para os AVC, dos quais os cidadãos portugueses também são infelizmente líderes na Europa. Todos os dias morrem cerca de 100 portugueses por doenças cérebro-cardiovasculares. No artigo, os autores destacam ainda que existem muitas pessoas relativamente jovens que sofrem de hipertensão e que não se encontram devidamente medicadas, ou seja, correm um maior risco de sofrer um AVC.
Há ainda outras possíveis explicações para o fenómeno tipicamente português. Luís Ruano sublinha que a hipótese é especulativa mas que “tem vindo a ser descrito um risco menor de doença de Alzheimer nas pessoas que consomem ácidos gordos, especificamente ómega 3 e ómega 6 muito presentes no azeite e no peixe gordo”. Uma teoria baseada na dieta que explicaria a partilha do padrão epidemiológico de Portugal com o Japão e alguns países do Médio Oriente, que também têm uma menor prevalência de demência por Alzheimer.
“A demência vascular, ao contrário da por Alzheimer, pode ser prevenida. Há que apostar, por exemplo, em medidas de prevenção primárias, como uma dieta saudável, exercício físico regular e o controlo dos principais factores de risco cardiovasculares.”
O investigador lembra ainda que a doença de Alzheimer não é particularmente determinada por questões genéticas. “O risco genético é baixo. Mas sabemos que existe menor prevalência entre a população portuguesa do alelo épsilon 4 do gene APOE, o factor genético de risco mais comum para a doença de Alzheimer.” No artigo refere-se especificamente que a prevalência desta característica genética na Europa é de 12,7% e em Portugal é de apenas 9,8%.
Independentemente das explicações mais ou menos especulativas que possam existir, Luís Ruano sublinha que esta investigação traz sobretudo uma importante mensagem de saúde pública sobre o elevado potencial de prevenção da demência em Portugal. “A demência vascular, ao contrário da por Alzheimer, pode ser prevenida. Há que apostar, por exemplo, em medidas de prevenção primárias, como uma dieta saudável, exercício físico regular e o controlo dos principais factores de risco cardiovasculares.”
Assim, a boa notícia é que este tipo de demência pode ser prevenido. Um pequeno gesto como reduzir o consumo de sal pode ser decisivo. Segundo os dados do Inquérito Alimentar Nacional e de Actividade Física (realizado entre 2016 e 2017), cada português consome, em média, três gramas de sal em excesso por dia. Multiplicando por todos, estamos a falar de 30 toneladas de sal por dia a mais.
Andrea Cunha Freitas
In “Público”