Os sucessos alcançados não podem impedir uma análise crítica sobre a reforma da assistência psiquiátrica em Portugal.

 

Exatamente há 20 anos, Portugal dava um passo decisivo para se colocar a par dos seus congéneres europeus numa área essencial da saúde. Com a publicação da Lei de Saúde Mental 36/98, criavam-se as condições jurídicas para uma mudança de paradigma na assistência psiquiátrica no nosso país, através da regulamentação do internamento compulsivo e da reconfiguração do modelo organizativo de prestação de cuidados.

 

Percorridas duas décadas, e em tempo de balanço, são inegáveis as transformações ocorridas e os sucessos alcançados em diversas dimensões.

 

Na vertente organizativa, a rede de serviços locais expandiu-se, diminuiu o número de hospitais psiquiátricos, os internamentos passaram a decorrer maioritariamente em hospitais gerais, a vertente ambulatória e de hospitalização de dia duplicou, os recursos médicos aumentaram, tendo-se desenvolvido em alguns centros programas diferenciados para pessoas com perturbações psiquiátricas graves. Paralelamente, foram progressivamente criadas novas respostas na área da reabilitação psicossocial, envolvendo a Segurança Social e estruturas do sector social (ex. IPSS), estando para breve a avaliação das experiências-piloto de Cuidados Continuados atualmente em curso. A dinâmica de abertura e cooperação criou as condições para uma maior participação de doentes e famílias e fomentou o estabelecimento de redes com outros sectores da sociedade, dando à saúde mental um papel crescente em áreas de interface (ex. suicídio, violência doméstica, catástrofes, sem-abrigo, inclusão social na adolescência).

 

Estes sucessos não podem, no entanto, impedir uma análise crítica sobre o processo de reforma da assistência psiquiátrica em Portugal, o qual se tem caracterizado nas últimas décadas por uma indesejável sucessão de avanços e recuos, alternando fases de transformação significativa com períodos de marcado refluxo. Se o Plano Nacional de Saúde Mental teve desde o seu início (2008) sérios problemas de implementação, agravados a partir do momento em que o país entrou no período de assistência financeira externa, tal facto não ocorreu seguramente por acaso: apesar da reconhecida qualidade técnica e elevado empenho dos profissionais de saúde mental, e não obstante as várias tentativas dos sucessivos responsáveis pela área, devemos reconhecer que subsistem no nosso país um conjunto de barreiras de natureza estrutural (e não apenas conjuntural) que têm obstaculizado a mudança de paradigma que a Lei de Saúde Mental preconizava já há 20 anos.

 

Assim, dificilmente poderemos oferecer os cuidados necessários às pessoas doentes e às suas famílias, esbatendo as assimetrias regionais, se não conseguirmos encontrar um caminho que permita ultrapassar estas barreiras. As propostas de extensão do Plano Nacional de Saúde Mental a 2020, elaboradas pela Comissão Técnica de Acompanhamento da Reforma de Saúde Mental, podem dar um contributo na construção desse caminho, mas só terão tradução se contarem com a participação ativa de todos, instituições e profissionais dos vários sectores, utentes, familiares, cuidadores informais, dirigentes e responsáveis políticos.

 

Atualmente, dispomos já de bons planos, relatórios, documentos de avaliação. Que falta para os colocar em prática, para além dos aspectos técnicos?

 

Desde logo, garantir um apoio político sustentado no tempo, mantendo as opções estratégicas do Plano Nacional de Saúde Mental independentemente dos ciclos legislativos. A implementação do plano será tanto mais facilitada quanto maior a ligação orgânica e funcional entre quem coordena (Direção-Geral da Saúde), quem executa (Administrações Regionais de Saúde e respectivos gabinetes de saúde mental) e quem presta cuidados (Serviços).

 

Em conformidade com esta maior ligação, reforçar a participação de doentes, familiares e cuidadores informais na definição das políticas de saúde mental, uma prática já comum na Europa Ocidental, mas que só agora está a começar entre nós.

 

Para último, fica o maior desafio: dotar a saúde mental de uma importância social correspondente ao seu impacto na vida das pessoas. Em Portugal, a saúde mental ainda não conseguiu ganhar visibilidade na população, ao contrário do que ocorre em outras áreas, como as doenças cardiovasculares ou o cancro. Embora o estigma face à doença mental tenha aqui um papel, o maior determinante tem sido a insuficiente comunicação com o público: sem informação, não há sensibilização. Hoje em dia, não há quem ignore os benefícios do exercício físico ou os riscos do tabagismo, mas que sabem os portugueses sobre o estado da saúde mental no seu país, sobre o impacto do sofrimento psicológico e alterações do comportamento em adultos e crianças, sobre os custos familiares e sociais das perturbações psiquiátricas?

 

Vinte anos depois da publicação da Lei de Saúde Mental, e dez anos depois da aprovação do plano nacional, cabe-nos a todos a responsabilidade de responder a este desafio. A saúde mental dos portugueses bem o merece.

 

 

 

Director do Programa Nacional para a Saúde Mental

 

Presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental

 

Secretário de Estado adjunto e da Saúde.

 

In “Público”