Tiago Dias tinha 9 anos quando lhe diagnosticaram leucemia. Aos 18 já só pensa no futuro
Há miúdos que nos envergonham. Envergonham-nos com a sua humildade, com a maturidade que excede os seus anos e com a naturalidade com que encaram uma leucemia, nome que a muitos de nós faz estremecer. Tiago Dias é um desses ‘miúdos’. Se o chamo de miúdo – na verdade é um senhor de 18 anos – é tão-somente para acentuar a força de quem tão novo já conseguiu vencer uma doença tão grave.
Tudo começou em Setembro de 2009. Tiago Dias, então com 9 anos, tinha ido de férias com a família para a Venezuela.
Após um voo de mais de sete horas, o menino sentia-se extremamente cansado. Na altura acharam natural e atribuíram a fadiga à duração da viagem, mas o cansaço persistiu.
“Passado alguns dias, comecei a estar cansado do nada, sem ter feito esforços. Comecei a deixar de comer e começaram todos a achar que poderia ser Gripe A, porque na altura (em 2009) se falava muito nisso (...) Então levaram-me lá ao médico”, conta Tiago.
Tal como havia sucedido com a família, também o médico atribuiu os sintomas à viagem e à mudança de clima, pelo que a mãe mais descansada resolveu levar o menino a passar uns dias numa casa de praia.
“Foi lá que começou a piorar”, relata Tiago. “Não dormia nada durante as noites, tinha sempre dores no corpo e principalmente nas articulações”, acrescenta. Depois deste episódio ainda voltaram ao médico na Venezuela, que lhes recomendou fazer umas análises. Como estavam em vésperas de regressar à Madeira, as análises acabariam por ser feitas na Policlínica de Machico, a sua cidade natal.
Durante dois meses seguiu-se um percurso de avanços e recuos entre Machico, o Hospital Dr. Nélio Mendonça, no Funchal, e o IPO, em Lisboa.
“Cheguei ao Hospital pela primeira vez e a médica disse-me que não era nada e mandou-me para casa. Da segunda vez internaram-me no Hospital do Funchal. Suspeitavam de três coisas: hepatite, doença grave no coração ou leucemia. Depois começaram os exames. Entretanto, como não conseguiam chegar nenhuma conclusão mandaram-me para o IPO, em Lisboa. Voltaram a mandar-me para casa. Passadas duas semanas os sintomas começaram outra vez, mas com mais força. Fui directo para o Hospital fazer exames outra vez e mandaram-me para o continente. Não voltei mais”, resume Tiago.
Desta vez já não restavam dúvidas: “Tiveram a certeza que era leucemia”.
“A partir dali haveriam muitas mudanças na minha vida”
Como é que se diz a uma mãe que o seu filho de 9 anos tem leucemia? E como é que se explica a uma criança que tem uma doença que a pode matar?
A resposta está na surpreendente maturidade de Tiago, no incrível apoio da Associação Acreditar e numa ligação familiar inabalável.
“Eu era muito novo mas já entendia. Sabia que era grave e que a partir dali haveriam muitas mudanças na minha vida”, afirma Tiago Dias.
À pergunta óbvia “tiveste medo?”, responde com um convicto “não”. E esclarece: “Tive medo de algumas situações, mas não era medo de morrer, era medo de dor que ia sentir por fazer alguma coisa (...) Nunca pensei que não fosse eficaz o tratamento. Eu sabia que estava bem encaminhado e tive quase sempre a certeza de que ia correr tudo bem”.
No caso da família, as coisas foram diferentes: “Eu tinha [a certeza], agora as pessoas que me rodeavam não”. “Quem me apoiou mais foram a minha mãe, os meus avós e os meus tios. Eu sei que eles ficaram de rastos. Foi mesmo um choque”, acrescenta.
É aqui que entra a Acreditar. “Acho que o apoio aos pais é muito importante e eles conseguem fazer isso muito bem. Seja qual for o problema, eles estão sempre lá a batalhar para alegrar os pais (...) Ao ficarem alegres dão maior confiança aos filhos”, realça Tiago.
Para o jovem Tiago mais difícil que a terapia em si – embora confesse que os tratamentos intravenosos eram os que lhe “custavam mais”, porque tinha de ficar internado no IPO “um mês ou umas semanas” – foram as coisas que viu. “Há coisas que me marcaram até hoje”, admite.
Ao DIÁRIO narrou um episódio de um menino que morreu no quarto ao lado do seu. “Estava a ouvir música de manhã no quarto e vieram dizer-me para baixar um pouco o volume, porque o vizinho do quarto ao lado estava com dores de cabeça (...) Mais tarde apercebei-me de alguma agitação, mas não prestei atenção. Depois vim a saber que tinha morrido”.
“É complicado. Por vezes no meio daquele azar todo sentia que era um sortudo por não ter de passar por situações que outros passavam, mas por outro lado ficava com pena”, sublinha.
“O que me dava mais força era a família”
Se é verdade que há situações que marcam pela negativa, também há o inverso. Para Tiago o episódio mais marcante dentro da Casa foi o Natal 2009, quando toda a sua família reuniu-se para visitá-lo.
“O que me dava mais força ali e o que sentia mais falta era da família, apesar de ter as pessoas mais importantes comigo. Eles tentavam ir visitar-me sempre. Uma semana ia uma parte da família, noutra semana ia outra, mas no Natal foi quando juntaram-se todos e foram visitar-me. Eu também faço anos no Natal, por isso, soube bem ter a família lá perto”, recorda com um sorriso.
A família é, de resto, a grande constante na vida de Tiago: “Agradeço sempre e dou muito valor à família, sobretudo à minha mãe e a minha avó que estiveram sempre lá [no continente] comigo, mas também aos meus outros avós e os meus tios que iam lá visitar-me”.
“Para mim a família está mais alto do que qualquer amizade. Pode haver alguma amizade que seja parte da família, mas a família é sempre família”, reitera com convicção.
“Querendo ou não eu era diferente deles”
Concluída a primeira fase dos tratamentos, regressou à Madeira em Fevereiro de 2010. Apesar do suporte incondicional da família, foi na escola e com as amizades que Tiago sentiu as maiores sequelas da sua doença.
“Até 2010 a minha evolução médica foi sempre a melhorar. Nunca tive nenhuma recaída ou alguma coisa que interferisse no tratamento. A nível de vida foi complicado”, confessa.
“Quando fui para o 5º ano, em 2011, mudei para uma turma diferente e aí começaram mais as amizades a sério. Mas era um pedacinho difícil, porque querendo ou não eu era diferente deles”, conta com tristeza e explica que era frequente ser “olhado de lado” pelos colegas.
“Os tratamentos mudam a nossa fisionomia, ficamos mais inchados por causa da cortisona e é normal vê-los a olharem de lado e essas coisas todas (...) Nos dois primeiros anos, 5.º e 6.º ano, eu notei isso (...) Claro que me marcou”, admite.
No que ao seu percurso escolar os tratamentos também influenciaram. “Tive de faltar muito à escola, mas não perdi nenhum ano”, diz sem esconder algum orgulho.
“Fazia os testes em casa e mesmo quando estava no continente no IPO a escola envia-me os ficheiros numa ‘pen’ por correio para eu fazer os testes. Depois lá no IPO enviavam-nos de volta para a Madeira. Eles corrigiam e eu fazia assim a minha vida escolar”, descreve. “Era mais ou menos bom aluno”, conclui entre risos.
“Hoje em dia faço a minha vida completamente normal”
O ano de 2012 marcou um ponto de viragem na vida de Tiago.
“Em Fevereiro de 2012, após ter feito o tratamento (que são dois anos) fui outra vez ao IPO de Lisboa fazer um exame final, que é praticamente igual ao que eu fiz no início para ver se ainda existiam células malignas (...) Na consulta disseram-me que estava tudo bem e que o tratamento tinha tido sucesso, mas tinha de esperar cinco anos para ver se durante esse espaço de tempo havia alguma recaída. Se existisse teria de fazer transplante”, esclarece.
Não houve, como ressalva Tiago, propriamente um anúncio do médico a dizer “está curado”. Foi um caminho percorrido aos poucos, com mais leveza e liberdade, em que o jovem começou a integrar-se e a ter “uma vida normal”.
“De 2012 até 2017 não ocorreu simplesmente nada (...) Apesar de saber que nos últimos 5 anos era possível haver uma recaída, a verdade é que nos últimos dois anos praticamente já nem pensava nisso”, afirma. E com a visível gratidão de quem sabe dar valor à vida acrescenta: “Sinto-me sortudo, porque existem casos que não correm tão bem como o meu e as pessoas saem dos tratamentos com sequelas ou com alguma coisa que lhes atrapalha a vida”.
Apesar de superada a leucemia, Tiago Dias continua a ir ao hospital uma vez por ano fazer análises, mas agora fá-lo com os olhos postos no futuro.
Este ano vai já vai para a Universidade, tirar informática.
“A nossa maneira de pensar muda tudo”
Esperança – a palavra nunca pronunciada por Tiago ao longo desta entrevista e, ainda assim, sempre presente – é a maior ‘lição’ da história deste jovem, que diz que a doença o fez ganhar maturidade e uma forma diferente de encarar a vida.
“Quem passou por aquilo que eu passei entende muito mais outras situações que as pessoas da minha idade não conseguem entender. Certos excessos incomodam-me. Para mim não é por beber álcool ou fumar que eu vou ser melhor do que os outros. E também outras situações como gozarem uns dos outros (...) Podem estar a gozar com uma pessoa que está naquelas condições por certos factores da vida”, comenta em relação às questões próprias da adolescência.
Já às pessoas que hoje em dia estão na situação pela qual passou, Tiago deixa um conselho: “Além de pensar na doença, pensar bastante no futuro. Ao pensar no futuro a pessoa vai ganhar força de viver para superar aquilo que está a passar e conseguir atingir um objectivo”.
Sonhar é fundamental.
“Uma pessoa que tenha uma profissão de sonho ou que deseje fazer uma viagem que pense nisso. Pense ‘quando eu acabar isto vou poder’ (...) A nossa maneira de pensar muda tudo”, conclui.
Tiago tinha muitos sonhos e garante que foi isso que o ajudou. Alguns deles como ir a Canárias ou ter à experiência de comandar um avião conseguiu realizar após os tratamentos.
Hoje tem, certamente, muitos mais.
In “Diário de Notícias"