Vítor Correia, enfermeiro e coordenador do EuReCa

 

Em Novembro de 2017, o European Registry of Cardiac Arrest (EuReCa ONE), estudo liderado cientificamente pelo European Ressuscitation Council (ERC) e coordenado em Portugal pelo Serviço de Emergência Médica Regional (SEMER), recebeu um dos maiores prémios de investigação no que concerne ao fenómeno da paragem cardiorrespiratória pré-hospitalar, no American Heart Association Ressuscitation Science Symposium.

 

O prémio foi simultaneamente um reconhecimento por parte da American Heart Association (AHA) pelo trabalho desenvolvido na Europa pelo ERC e em última instância, pelo trabalho desenvolvido em Portugal/Madeira pelo SRPC/SEMER/EMIR no que respeita ao objecto do estudo, sendo o ‘focal point’ e coordenador nacional o Enfermeiro Vitor Correia, especialista em Médico-Cirurgica e operacional na Equipa Médica de Intervenção Rápida (EMIR) .

 

Ao DIÁRIO Vítor Correia falou sobre o EuReCa 1, um estudo epidemiológico, que envolveu um total de 27 países e abrangeu 174milhões de europeus e 10.682 eventos de PCR e sobre o que este primeiro estudo já permitiu perceber sobre a forma como a sociedade olha estes eventos e o que é necessário fazer para mudar o paradigma e que passa, por exemplo, por tornar as pessoas mais activas perante um fenómeno de paragem.

 

Foi um desafio integrar este estudo? Sim, por variadas razões. Inicialmente o país estava excluído, ou seja, quando se iniciou o EuReCa 1 e mesmo dentro do projecto global do EuReCa, Portugal não estava representado e na altura, a situação chamou a minha atenção, falei com a coordenação do Serviço de Emergência Médica [estamos a falar de 2013/2014] na possibilidade de representarmos o país e eventualmente participarmos no projecto. Foram desenvolvidos vários contactos com pessoas que nós não conhecíamos pessoalmente, sob pena de não ficarmos incluídos neste grupo restrito de pessoas. Passou um pouco por aí o desafio, de integrarmos um projecto de âmbito europeu, com uma estrutura muito grande, que nos permitiu também fazer um pouco de benchmarking.

 

Foi desafiante então porque não sabiam bem a que iam, ao mesmo tempo que implicou a responsabilidade de representar um país... Sim e inicialmente não sabíamos se íamos estar sozinhos ou não. Desenvolvemos alguns contactos informais com algumas pessoas que poderiam participar connosco, como o Instituto Nacional de Emergência Médica, porque tínhamos boas relações pessoais, mas na altura disseram-nos que não havia possibilidade. Então ficamos “sozinhos” e assumimos a situação...

 

E não deve ter sido algo muito simples, porque afinal isto foi tudo desenvolvido à margem do trabalho realizado diariamente no SEMER. Nós como já temos o Programa Regional de Desfibrilhação Automática Externa, já existe na Região alguma experiência na colheita de dados para o evento que estava em estudo e que era a paragem cardiorrespiratória pré-hospitalar. Partiu um pouco por aí, pelo facto de já termos alguma experiência na colheita de dados, embora a colheita de dados para este estudo seja feita numa folha específica para o efeito, preparada pelo Conselho Europeu de Ressuscitação.

 

O trabalho extra compensou não só pelo prémio, mas também pela experiência que permitiu? Até este momento, muito do nosso trabalho era apenas regional e eventualmente algum trabalho nacional, e agora passamos para um patamar europeu. Nós, de certa forma, entramos num campo mais alargado e isso permitiu expandir os nossos horizontes e a mostrar aos vários serviços europeus participantes no estudo que nós, Região turística, também temos capacidade do ponto de vista da saúde e, neste contexto específico, de resposta e de emergência pré-hospitalar, temos capacidade para estar nesta área e demonstramos que estamos a representar o país.

 

O prémio recebido é um reconhecimento? Este prémio visa reconhecer a capacidade de um grupo alargado de pessoas se juntar e se debruçar sobre um fenómeno, se bem que o prémio, especificamente, visa galardoar individualidades, entidades, unidades científicas que se dediquem a esta causa, do estudo do fenómeno da paragem cardiorrespiratória pré-hospitalar.

 

Em termos de resultados do EuReCa1, o que se pode dizer? Como é que a Região está em termos deste fenómeno? O estudo é feito com base numa visão alargada, europeia, se bem que depois, cada país tem as suas especificidades. Mas para a análise dos dados estatísticos foram excluídos os dados de alguns países que não reuniam o número mínimo de sobreviventes. Foi o que aconteceu com a Madeira: como não reuníamos o número mínimo de sobreviventes fomos excluídos estatisticamente no campo dos doentes que após 30 dias permaneciam vivos. De resto, em termos de incidência de paragens cardiorrespiratórias e de retorno de circulação espontânea, ou seja, o trabalho de recuperação que a EMIR faz, nós estamos na média europeia. Ou seja, temos uma incidência média de paragens cardiorrespiratórias por 100 mil habitantes e para retorno de circulação espontânea.

 

Essa média é quanto? Temos à volta de 51 paragens cardiorrespiratórias pré-hospitalares para cada 100 mil habitantes. Porém, temos de ter em conta que o EuReCa1 teve a duração de um mês, logo é apenas uma fotografia do que acontece na Europa. Esta foi uma fase inicial de um grande projecto mais alargado. Neste segundo estudo procuramos alargar para ter mais dados e ter uma estrutura mais robusta do ponto de vista estatístico, de modo a que tenhamos uma visão mais global e mais real deste fenómeno, nas suas mais diferentes variantes.

 

Então esta segunda fase é mais completa? Sim. Vamos ter mais dados. Um mês em doze (que foi o que aconteceu no primeiro estudo), vale o que vale, porque é muito variável. Porque, por exemplo, muito recentemente temos 3 sobreviventes em menos de um mês. Nesta segunda fase são os resultados de três meses.

 

Podemos dizer que os resultados destes estudos são úteis para avaliar o tipo de resposta dada? Sim, avaliam a resposta e todo o processo assistencial. Se estamos na média europeia em termos de incidência, isso tem a ver com os hábitos de vida e com comportamentos. Este estudo visa também analisar epidemiologicamente as paragens, ou seja, existem factores que influenciam a incidência dos eventos. Em relação à resposta e ao retorno de circulação espontânea, diz muito a respeito da nossa forma de responder aos eventos. E na Madeira, como em todo o país, temos um problema agravado e que está relacionado com o facto de termos uma sociedade que não se envolve e não se responsabiliza muito por estes eventos, a não ser que sejam profissionais de saúde. Tivemos apenas uma situação de reanimação cardiorrespiratória quando chegaram os primeiros meios ao local. Em todos os outros, ninguém estava a fazer nada. Isso é um factor essencial para a recuperação e para a sobrevivência. Este é um problema que não é só regional, mas nacional.

 

Mas tem havido um esforço para sensibilizar para a importância dos cursos de suporta básico de vida em toda a sociedade... Em todas as paragens cardiorrespiratórias que nós usamos para este estudo, apenas numa situação tivemos um leigo que fez alguma coisa. Em todas as outras, quando os bombeiros chegaram ao local é que iniciaram a reanimação. E nós sabemos que a possibilidade de sobrevivência é tempo-dependente e a probabilidade do sucesso e de recuperação também. Mas se temos casos como o nosso em que apenas uma pessoa com paragem estava a ser alvo de manobras quando chegou a ambulância, temos países que estão num outro extremo, que são sociedades muito desenvolvidas, como a Noruega, em que mais de 80% dos casos um popular, um leigo, estava a fazer reanimação, ou pelo menos compressões, à hora da chegada dos serviços de emergência médica. Isto diz respeito a um problema que está relacionado com a nossa educação, porque nas escolas, seja em que ciclo for, mesmo no Ensino Superior (excepto nos cursos da área da saúde) não temos qualquer sensibilização para isto. Esta é uma situação que o Serviço de Emergência Médica, juntamente com a Secretaria de Educação, já tentou desenvolver, e está estruturado e montado há vários anos, um programa que visava progressivamente ir sensibilizando as crianças e ensinando passos muito simples, como por exemplo, aos mais novos ensinar a telefonar para o 112, depois, numa fase subsequente, ensinar algum Suporte Básico de Vida, nomeadamente compressões, e numa fase mais tardia, até ao 12º ano, ensinar a fazer Suporte Básico de Vida com recurso a Desfibrilhação Automática Externa.

 

E temos o Programa Regional de Desfibrilhação Automática Externa... Sim, temos o Programa Regional, com muitos aparelhos distribuídos. Temos aliás um programa que é exemplar no país. Temos um dos maiores rácios de aparelhos por habitante do país. Mas temos este problema, da sociedade que se desresponsabiliza por estas situações. Se tivermos em conta que é em casa que acontece a maior parte das paragens (mais de metade dos casos), é em casa que nós temos de começar a sensibilizar. E isto é o que acontece na Europa toda. A maior parte das paragens acontece no domicílio.

 

Mas há sinais, há um perfil a que devemos estar atentos nestas situações? A paragem cardiorrespiratória é um evento súbito e inesperado. Não há muitos sinais. Temos uma incidência grande em adultos jovens, saudáveis até à data. Adultos jovens em que o coração pára por uma arritmia, num contexto ou não de enfarte, e são esses que são mais susceptíveis de levar um choque por DAE, daí que esses aparelhos estejam distribuídos em locais-chave da Região, em grandes centros, onde existem grandes aglomerados de pessoas, como é o caso de aeroportos, centros comerciais, recintos desportivos, etc. Depois temos outra franja da população que é uma franja de pessoas com várias doenças e co-morbilidades, que devido a essas doenças entra em falência cardíaca e respiratória que culmina num evento de paragem cardiorrespiratória.

 

Creio que um estudo destes é sobretudo útil para dar dicas sobre como podemos melhorar e agir no futuro e modificar comportamentos... O estudo tem como objectivo, a médio e longo prazo, construir um registo permanente para a paragem cardiorrespiratória para o qual todos os países irão drenar dados para uma base de dados europeia, de acesso livre. Isto permitirá avaliar o que estamos a fazer, comparar e evoluir. Neste momento, independentemente dos resultados do estudo, ao nível do Serviço de Emergência Médica já tem havido uma grande campanha de acções de sensibilização em centros comerciais, escolas, acções de ‘mass training’ em suporte básico de vida, etc... Tem sido feito um grande trabalho, mas realmente vemos que a diferença pode estar na Educação, ou seja, temos o caso de uma Noruega, em que as crianças desde cedo conseguem identificar uma pessoa que esteja em dificuldades, que depois aprendem a usar o Desfibrilhador... Penso que aqui é que está a diferença... Penso que a para termos melhores resultados, temos de apostar aqui, ter uma sociedade que perceba que é tão importante declarar os impostos, como saber agir em caso de emergência... Penso que o caminho será esse.

 

E acha que isso é possível? Penso que deve ser possível. Agora é necessário haver um entendimento da importância deste aspecto, perceber que é determinante da qualidade de vida, da evolução de uma sociedade.

 

Depois do EuReCa1, já houve um HoReCa2? Depois do EuReCa1 juntaram-se mais dois países (neste momento são 29) participantes, o estudo visou colheita de dados de paragem cardiorrespiratória de 1 de Outubro a 31 de Dezembro de 2017, logo três meses, o que vai dar uma maior robustez de dados, uma fotografia mais real do que se passa na Europa. Neste momento estamos na fase de tratamento estatístico de dados e análise dos mesmos, que depois serão enviados para os co-autores do estudo (onde eu me incluo como representante e coordenador nacional do estudo em Portugal) que têm de dar algum feedback. Depois, o estudo é submetido a bases de dados internacionais, a revistas científicas e de relevo na área. A ver vamos, mas creio que o estudo deve ser publicado no Verão de 2019.

 

E há previsão de haver um EuReCa3? Penso que sim. Porque se o objectivo é o de criar um registo permanente, penso que, para chegar a uma situação dessas teremos de ter um estudo que dê um feedback de maior envolvimento e de capacidade de envolvimento permanente de um país ou serviço de emergência médica. Por isso, penso que deverá haver um estudo que cubra pelo menos 6 meses de dados. Embora não saibamos o que irá acontecer, penso que haverá uma 3.ª edição do estudo com esse objectivo de incluir mais dados.

 

In “Diário de Notícias”