A construção de bancos de dados com informação genética é um passo fundamental para o desenvolvimento de novas pesquisas
O cancro é uma surpresa, uma má notícia que nos confronta de repente. Mas não precisa de ser assim. Em alguns casos, pode até ser evitado. A médica holandesa Nicoline Hoogerbrugge, coordenadora de uma rede europeia de referência na área oncológica, esteve em Portugal a alertar para a importância da adoção de uma atitude preventiva do cancro hereditário, o único que não precisa de chegar num susto
A Associação Portuguesa de Investigação em Cancro (ASPIC) realizou na última semana o seu terceiro congresso internacional, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Imuno-oncologia, metastização, resistência aos tratamentos e o impacto das novas tecnologias na investigação oncológica foram algumas das áreas abordadas, com o objetivo de alcançar tratamentos mais eficazes e a garantia de uma melhor qualidade de vida para os doentes.
No meio de um programa apertado, um dos workshops foi dedicado às redes de referência do cancro hereditário e a principal convidada foi Nicoline Hoogerbrugge, médica holandesa que coordena a Genturis, rede europeia para doentes com risco de cancro genético, cuja missão fundamental é colocar em articulação centros especializados dos vários países, melhorando o acesso ao diagnóstico precoce, a tratamentos e a um atendimento específico para os doentes com possibilidade de desenvolverem cancros com origem hereditária.
Estes são doentes que nascem com um risco de 100% de desenvolverem uma patologia oncológica porque são portadores de mutações genéticas, capazes de predispor ao desenvolvimento de tumores, mas que, apesar desta certeza, são em geral alvo de diagnósticos tardios, sofrem com a falta de prevenção e terapêuticas inadequadas. As estatísticas indicam que apenas 20 a 30% destes doentes saibam que são portadores de mutações genéticas. Muitos são bastante jovens e por isso pensam que não são passíveis de sofrer de doenças oncológicas. A missão da Genturis e de Nicoline Hoogerbrugge é combater esta realidade.
Portugal faz parte da Genturis e a representante nacional na rede é Carla Oliveira, investigadora do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), especializada em cancro gástrico e às alterações genéticas que podem estar na sua génese. O seu trabalho na Genturis é identificar todos os potenciais intervenientes, desde os médicos especialistas e toda a equipa clínica, aos centros hospitalares onde existem consultas sobre o cancro hereditário, associações profissionais e farmacêuticas com terapias aplicadas a este segmento, às associações que representam os doentes e os seus familiares. Uma tarefa que, avançou ao Expresso, deverá estar concluída até ao final deste ano.
Em conversa com o Expresso, Nicoline Hoogerbrugge sublinhou a importância de uma abordagem familiar da patologia de origem hereditária e sobre a necessidade de alertar os médicos de família para estarem atentos aos sinais de um potencial sintoma de cancro, independentemente da idade do doente.
Da esquerda para a direita: Tamara Hussong Milagre, presidente da associação Evita de apoio aos doentes com cancro hereditário, Nicoline Hoogerbrugge, médica holandesa e coordenadora da Genturis, Carla Oliveira, do Ipatimup
Da esquerda para a direita: Tamara Hussong Milagre, presidente da associação Evita de apoio aos doentes com cancro hereditário, Nicoline Hoogerbrugge, médica holandesa e coordenadora da Genturis, Carla Oliveira, do Ipatimup
A sua abordagem não é focada apenas no doente, mas em toda a família. Em Portugal, nem sempre é assim. Porque defende esta forma de lidar com a doença oncológica?
Não se trata de uma opção, quando lidamos com o cancro hereditário, é mandatório que assim seja. Todos os doentes têm as suas histórias e receios, mas em geral, todos os doentes com cancro hereditário têm histórias de familiares que morreram cedo, que precederam o diagnóstico. Há que ter muito cuidado, mas é preciso alertar as famílias para o risco, porque esta é a primeira forma de evitar a doença. E quanto mais cedo for feita a identificação familiar, melhor será o prognóstico destas pessoas. É possível evitar muito sofrimento.
Como faz isso de forma concreta? Convoca toda a família para uma consulta? Não deve ser simples.
Como médicos, acompanhamos um doente e não podemos chamar todos os familiares para uma consulta, não os alcançamos a todos. No entanto, o nosso doente pode passar a mensagem. Então, a forma mais correta é dar instruções precisas ao nosso doente, informá-lo de que deve contactar os familiares e lhes explicar o que se passa. A reação poderá não ser a melhor nem ser imediata, mas a informação acabará por ser tida em consideração.
Do ponto de vista médico é essencial alargar o vosso conhecimento e criar bases de dados com informação genética de cada vez mais doentes?
Sim, claro, esse aspeto é extremamente relevante. Tendo em conta todas as exigências de privacidade dos doentes, a construção de bancos de dados genéticos é importantíssima. Esse é um passo fundamental para o desenvolvimento de novas pesquisas. Essa abordagem tem apenas 25 anos, mas pode mudar a terapêutica oncológica. E a colaboração internacional, com troca de dados e conhecimento é absolutamente essencial.
Portugal está na Genturis, como tem se articulado na rede?
É um Estado membro da rede e, embora tenha poucos centros de referência e poucos doentes diagnosticados com cancro hereditário, tem uma investigação muito importante na área do cancro gástrico. E o fundamental é que os países, como Portugal, tenham acesso ao diálogo que se estabelece entre aos especialistas, trocando informação sobre as melhores práticas nas várias patologias. A nossa perspetiva é de que o doente não precisa viajar, quem tem de se deslocar é a informação. E o doente tem de ter acesso ao melhor tratamento, esteja onde estiver.
Qual será o futuro na área do cancro hereditário?
O futuro passa pela união de esforços. Tudo depende da partilha da informação, porque apenas um terço dos doentes com risco de desenvolver tumores oncológicos com base hereditária estão diagnosticados e sabem que são portadores de mutações genéticas. O cancro pode ser evitado, este cancro pode ser prevenido e é esta a mensagem que tem de ser transmitida. Eu sou coordenadora da Genturis mas não abdico de ver doentes, estar com eles e transmitir essa abordagem. Os médicos de família ainda não estão atentos a esta realidade e nem sempre estão atentos aos sinais.
Faz sentido continuar a usar a expressão raro para o cancro hereditário? Não é um obstáculo à sua identificação?
Para mim, que lido com ele, não é um obstáculo, mas se, visto de fora assim for, sentido podemos pensar em falar de outra forma, porque a verdade é que juntos, os doentes dos vários países e as suas famílias representam muitas pessoas. esta pergunta me faz pensar e terei mais atenção a esta questão daqui para a frente. Estes doentes correspondem a menos de 10% do total dos doentes oncológicos, mas uma vida para salvar é sempre muito importante. Não podemos pensar apenas de forma estatística
Christiana Martins
In “Expresso”