Doar sangue não é apenas uma questão de boa vontade. Se todos à partida podem fazê-lo, há requisitos e critérios a preencher. Do lado da ciência existem também avanços que permitem a redução racional das colheitas

 

Sabia que pelo corpo humano circulam à volta de cinco litros de sangue? E que isso corresponde a 7% do peso corporal de um adulto? E sabia que uma simples operação — digamos, à vesícula — pode requerer a transfusão de várias unidades de sangue ou de nenhuma? Se cada um de nós doar 450 ml, o volume colhido por dádiva pode salvar a vida de até três pessoas. Se o fizer três vezes por ano (as mulheres) ou quatro (os homens) — o máximo possível nesse espaço temporal —, salvará a vida de 9 ou 12. E fá-lo-á despendendo pouco mais de 10 minutos e de apenas 9% do volume total de sangue do organismo por cada dádiva, sem grandes incómodos, além da tradicional picadela.

 

Ser dador é fácil, mas não é só uma questão de boa vontade. Há vários requisitos que um dador tem de preencher para que o seu sangue seja elegível. Ter peso superior a 50 quilos, ter mais de 18 anos e ser saudável são os três critérios principais, que mesmo depois de comprovados podem não ser suficientes. Uma pessoa que tenha recentemente visitado locais onde se verifiquem situações endémicas — como dengue ou malária — passará por uma quarentena antes de poder voltar a doar sangue. Outra que tenha recebido uma transfusão sanguínea depois de 1980 não pode efetuar qualquer doação, por risco de transmissão de uma variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (doença das vacas loucas). Se mudou de parceiro sexual, é suspenso por seis meses. Se foi alvo de uma intervenção cirúrgica, fez uma tatuagem ou colocou um piercing, por quatro. Se teve uma gripe no período entre maio e outubro, por 28. As grávidas, os diabéticos que recebam insulina, os portadores de VIH, hepatite C ou B, ou os trabalhadores do sexo não são aceitados como doadores (e é suspenso por um ano quem teve contacto sexual com alguém infetado por uma destas doenças). E, por melhores intenções que se tenham, nem todo o dador serve para toda a gente: só o grupo 0Rh é dador universal.

 

Tudo isto torna necessário um exame médico feito antes da dádiva, em que se inclui a resposta a um apertado questionário. E é nesta fase que entram em jogo os deveres do doador. “Doar é um ato simples, que depende de uma decisão, mas que exige sinceridade total na resposta às perguntas que são feitas, sabendo que a informação será guardada sob sigilo. Dizer a verdade sobre a saúde e sobre os hábitos de vida é uma obrigação cívica, porque quem hoje dá um dia pode vir a precisar”, diz ao Expresso João Paulo Almeida e Sousa, presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). A validar a colheita está, porém, um rastreio analítico rigoroso, cujos processos permitem a despistagem dos fatores de risco. Em 2016, por exemplo, na sequência dessa análise, foram descobertos 30 casos de hepatite B, 22 de hepatite C e 26 de VIH. Nesse ano, o mais recente em termos de dados oficiais, houve 63.175 dádivas recusadas. Entre as razões para tal acontecer contam-se sobretudo os baixos níveis de hemoglobina, os comportamentos de alto risco e a síndrome gripal, assim como as viagens e a denominada ‘autoexclusão’ — quando, a meio do caminho, a pessoa escolhe não doar. Mais de metade das recusas derivam de situações minoritárias que não se enquadram em nenhuma das anteriores.

 

Da mesma forma que viaja pelo corpo, o sangue também circula fora dele. Depois de colhido e validado, há toda uma trajetória necessária para que chegue a quem dele precisa nas melhores condições. O passo seguinte é a separação dos componentes: o plasma, os glóbulos vermelhos e as plaquetas. Hoje em dia, existe a possibilidade de fazer dádivas por aférese, em que é colhida apenas a componente procurada. O processo costuma ser mais longo — demora entre 30 minutos a uma hora e meia — mas “diminui ainda mais o desperdício”, explica João Paulo Almeida e Sousa, notando que a continuação do desenvolvimento da aférese é um dos objetivos do IPST. Cada componente do sangue tem utilizações e tempos de duração diferentes. No caso das plaquetas, os seus escassos cinco dias de validade e o seu cada vez mais frequente uso terapêutico fazem com que seja um elemento em constante renovação. Já o plasma dura mais de três meses e os glóbulos vermelhos entre 35 e 40 dias.

 

Em Portugal, em 2016, registaram-se 334.022 dádivas — aproximadamente 150.300 litros de sangue — por 256.073 dadores. Destes, 30.660 foram-no pela primeira vez. Como vem acontecendo desde 2010 e seguindo uma tendência europeia, o número de dadores e de dádivas tem vindo a diminuir. Porém, não há motivos para alarme. “A redução das colheitas corresponde à diminuição da procura e é resultado não de haver menos voluntários mas de haver menor necessidade dos próprios doentes”, garante o presidente do IPST. Numa palavra, os avanços da medicina permitem “apenas colher o sangue e os componentes a serem utilizados”. Os dados demonstram que a cada ano são precisos menos glóbulos vermelhos — menos transfusões —, em proporção inversa à cada vez maior necessidade de plasma e de plaquetas. Quer saber quando doar e onde? O IPST tem uma aplicação gratuita que avisa o dador sobre qual a melhor altura e o local mais próximo para o fazer. E até alerta os dadores do grupo sanguíneo que estiver em falta.

 

Luciana Leiderfarb

 

In “Expresso”