Existem inúmeros relatos ao longo da história que sugerem um conhecimento desta doença e do seu modo de transmissão.
A hemofilia é uma doença hemorrágica transmitida pelo cromossoma X, o que significa que afeta quase exclusivamente os indivíduos do sexo masculino. É uma doença crónica que se caracteriza pela dificuldade no controlo das hemorragias. Na ausência de tratamento estas hemorragias podem produzir sequelas graves, habitualmente a nível articular ou mesmo constituir risco de vida.
Existem inúmeros relatos ao longo da história que sugerem um conhecimento desta doença e do seu modo de transmissão. No Talmud, o livro das leis e tradições judaicas, é referida a indicação de não submeter a circuncisão um terceiro filho rapaz, se dois dos seus irmãos tiverem sofrido uma hemorragia fatal na sequência deste procedimento.
Em tempos apelidada de “doença da realeza”, a hemofilia teve um papel importante na história política europeia dos séculos XIX e XX. A rainha Vitória de Inglaterra, portadora de hemofilia, transmitiu este gene à sua descendência afetando as casas reais espanhola, alemã e russa, talvez a mais emblemática, tendo provavelmente contribuído para o fim da dinastia Romanov.
Existem dois tipos de hemofilia de acordo com o tipo de fator da coagulação diminuído: fator VIII na hemofilia A, a forma mais frequente, e IX na hemofilia B.
Nas formas graves de hemofilia (nível de fator inferior a 1%) há risco de hemorragia espontânea. Na maioria destes casos o diagnóstico é efetuado nos primeiros anos de vida na sequência de hemorragia desproporcional após traumatismo ou hemorragia articular (hemartrose).
Nas formas ligeiras, com nível de fator superior a 5%, o diagnóstico pode ser mais tardio. As mulheres portadoras podem apresentar níveis de fator relativamente baixos, e em determinadas situações necessitar de tratamento.
Os primeiros tratamentos de substituição consistiam na transfusão de sangue total (não separado nas suas frações) e posteriormente plasma e crioprecipitado (uma fração do plasma sanguíneo mais rico em fator). Mais tarde surgiram os concentrados de fator VIII e IX, mais “puros” e que permitiram pela primeira vez oferecer uma terapêutica dirigida e mais eficaz.
Infelizmente, a par deste enorme avanço terapêutico, ocorre nos anos 80 um dos capítulos mais negros da história recente da hemofilia com a contaminação de produtos com o Virus da Imunodeficiência Humana (VIH) e posteriormente com o virus da Hepatite C (VHC). Muitas famílias foram atingidas de forma devastadora. Na sequência destes eventos foram sendo desenvolvidas novas formas de rastreio, produção e purificação destes produtos sendo estes, à data de hoje, sujeitos a um controlo extremamente rigoroso e considerados excecionalmente seguros do ponto de vista infeccioso.
Atualmente, para além da administração endovenosa de concentrados de fator nas hemorragias (terapêutica on-demand) preconiza-se a administração regular de fator para prevenir hemorragias (profilaxia – tratamento de primeira linha na hemofilia grave).
Embora a profilaxia seja o tratamento recomendado, a necessidade de administração endovenosa e a frequência de administração de fator (habitualmente várias administrações semanais) dificulta o início precoce da profilaxia e diminui por vezes a adesão ao tratamento.
Com o aparecimento de novas ferramentas para a monitorização e tratamento das pessoas com hemofilia nos últimos anos, assistimos a uma mudança de paradigma para uma terapêutica individualizada, com um objetivo específico para cada doente, adequado ao seu perfil hemorrágico, alterações articulares e nível de atividade física.
Isto obriga a uma co-responsabilização e maior interação do doente com a equipa de saúde, vigilância mais intensiva com apoio multidisciplinar, recurso a estudos de farmacocinética (doseamentos de fator para determinar a dose adequada para cada doente) e, a curto prazo, recurso a novos produtos de maior semi-vida (mais tempo em circulação no organismo), vias alternativas de administração e a promessa, num futuro próximo, da “correção” pelo menos parcial do defeito genético (terapia génica).
O tratamento dos doentes com inibidores (anticorpos que neutralizam o fator administrado tornando-o ineficaz), hoje a complicação mais grave da terapêutica da hemofilia, tem também acompanhado esta tendência e, para além dos agentes denominados de bypass já existentes (ativam a coagulação de forma alternativa controlando a hemorragia), existem também nesta área novos produtos muito promissores, que irão modificar a abordagem e prognóstico neste subgrupo de doentes.
O tratamento da hemofilia tem custos diretos e indiretos avultados. Embora existam orientações internacionais para o tratamento de pessoas com hemofilia, estes produtos não se encontram disponíveis de forma generalizada, sendo ainda muito frequente encontrar adultos e jovens com sequelas importantes nos países em vias de desenvolvimento.
Só com a disponibilização e gestão racional de todos estes recursos será possível assegurar a continuidade do tratamento compreensivo a longo prazo com enormes ganhos em saúde, tempo e qualidade de vida.
Unidade de Hematologia do Hospital Dona Estefânia (Centro Hospitalar Lisboa Central)
In “Público”