Estudo em ratinhos analisou os danos genéticos provocados por uma substância química que é produzida quando o organismo processa o álcool. Cientista portuguesa participou no artigo publicado na revista Nature.

A associação entre o consumo de álcool e um risco aumentado de vários tipos de cancro não é nada de novo. No entanto, ainda há muitos pormenores sobre esta relação e os seus mecanismos por esclarecer. Uma equipa de cientistas do Reino Unido investigou uma das íntimas ligações entre o álcool e o cancro através da análise do ADN em células estaminais. Nas experiências em ratinhos, os cientistas recorreram à administração de etanol nos animais e concluíram que a exposição ao álcool provoca danos genéticos permanentes. O estudo, que conta com a participação de uma cientista portuguesa, é publicado na edição desta semana da revista Nature.

 

“Alguns tipos de cancro surgem quando existem danos no ADN em células estaminais. Sabemos que alguns destes problemas ocorrem por acaso, mas os resultados do nosso estudo sugerem que beber álcool pode aumentar o risco desses estragos”, refere Ketan Patel, cientista do Laboratório de Biologia Molecular do Conselho de Investigação Médica do Reino Unido, em Cambridge, num comunicado da instituição Cancer Research UK que financiou parte do estudo. Sandra Louzada, investigadora portuguesa no Instituto Wellcome Trust Sanger, é especialista em genética molecular e uma das cientistas que assina o artigo. Segundo adiantou ao PÚBLICO, a sua colaboração neste estudo esteve relacionada com a análise dos conjuntos de cromossomas de ratinhos para identificar a “frequência de rearranjos e variações” entre os animais estudados.

 

Ao contrário da maioria dos estudos que são feitos em culturas de células para observar os efeitos do álcool na nossa saúde, desta vez os cientistas administraram etanol a ratinhos para observar in vivo o impacto deste consumo no ADN.

 

Os animais foram expostos a um “tratamento agudo” com uma dose total de 5,8 gramas de etanol por quilo, dividida em duas injecções, e também a um “tratamento crónico” que consistiu na mistura de etanol diluído na água dos ratinhos durante vários dias. As atenções estiveram sobretudo viradas para o acetaldeído, o químico que é produzido pelo organismo quando o álcool é processado. Em declarações ao PÚBLICO, Ketan Patel resume os resultados da investigação: “O álcool é processado pelo organismo através de uma toxina chamada acetaldeído, isso prejudica o ADN das células estaminais causando mudanças permanentes no genoma. Uma vez que uma célula estaminal faz muitas descendentes (células filhas), isso faz com que um genoma de células estaminais com defeito seja passado para muitas células.”

 

Uma garrafa de whisky

 

Sobre as generosas quantidades de álcool servidas aos ratinhos, o cientista esclarece na resposta por email que “a maioria das experiências usou uma única e grande dose de etanol que é equivalente a colocar um ser humano a beber uma garrafa de whisky de 750 mililitros de uma só vez!” Tendo em conta o que observaram em laboratório, Ketan Patel considera que estes testes demonstraram “que os ratinhos lidaram e processam o álcool de forma muito eficaz e que não são muito afectados por isso, mostrando estar 15 minutos bêbados e perfeitamente bem passado 30 minutos”. Mas é evidente que os efeitos do consumo de álcool podem ir muito além de uma simples ressaca passageira.

 

Os chimpanzés também bebem álcool como nós

 

Para a maioria das pessoas, o acetaldeído é um subproduto transitório do álcool que é “resolvido” (transformado em energia) por uma família de enzimas (ALDH) que, assim, funciona como um mecanismo de defesa. No estudo, os investigadores identificaram um dos membros desta família (a ALDH2) que terá um papel decisivo neste processo. Segundo concluíram, quando esta enzima não estava presente nos ratinhos que tinham sido “embriagados” os danos no ADN quadruplicavam, quando comparados com os animais com esta enzima a funcionar normalmente.

 

Os autores do estudo sublinham no artigo que existem cerca de 540 milhões de pessoas na Ásia que carregam uma mutação no gene ALDH2, o que significa que não conseguem lidar com o acetaldeído. Sabe-se que as pessoas que têm esta mutação enfrentam um risco aumentado em desenvolver cancro esofágico se consumirem álcool. No entanto, o artigo agora publicado na Nature sugere que estes indivíduos também podem ser mais susceptíveis a outros distúrbios sanguíneos induzidos pelo álcool.

 

 “O nosso estudo realça que não ser capaz de processar o álcool de forma eficaz pode levar a um risco ainda maior de danos no ADN relacionados com álcool e, portanto, a um risco aumentado de alguns tipos de cancro. Mas é importante lembrar que a eliminação do álcool e os sistemas de reparação do ADN não são perfeitos e que o consumo de álcool pode causar cancro de outras maneiras, mesmo em pessoas que têm estes mecanismos de defesa.

 

Próximo passo? “O trabalho foi feito processando células estaminais do sangue porque são fáceis de estudar e analisar. Queremos saber se outras células estaminais são afectadas de forma semelhante – particularmente as que estão em tecidos onde sabemos que o cancro se desenvolve após a exposição ao álcool (boca, fígado e mama)”, adianta o investigador. Vários estudos sobre a perigosa relação entre o álcool e cancro já demonstraram que este consumo (mesmo que seja leve ou moderado) está associado de forma clara a, pelo menos, sete tipos de cancro (faringe, laringe, esófago, fígado, cólon, recto e mama). A Organização Mundial da Saúde coloca o álcool no grupo dos agentes cancerígenos, apoiando-se em "provas convincentes" que causa cancro em humanos.

 

Ketan Patel nota que o artigo publicado agora não investigou a quantidade de álcool necessária para observar danos no ADN, mas antes “como é que o álcool pode causar danos”. “O trabalho também mostra que os seres humanos possuem um mecanismo de protecção robusto contra o álcool, conclui. “Dito isto, é provável que o ‘binge drinking’ [consumo rápido de grandes quantidades de álcool] ultrapasse essas defesas e que os efeitos cumulativos de longo prazo também sejam importantes, já que os humanos agora vivem muito mais anos. Talvez os danos acumulados no ADN possam comprometer o bem-estar na velhice. Assim, para saber que quantidade é seguro ou não beber será preciso investigar mais. Mas é interessante como este ponto não é muito questionado quando falamos de tabaco: por exemplo, se fumar cinco cigarros por dia é muito melhor do que 24?”

 

ANDREA CUNHA FREITA

 

In “Público”