Corria o ano de 1999 (já se passaram tantos anos!!!) era eu uma jovem enfermeira no IPO do Porto. Trabalhava no serviço de Medicina, piso 4. Era nesse serviço que os doentes oncológicos faziam quimioterapia em internamento.

De 21 em 21 dias, por norma, tínhamos os nossos doentes de volta para fazerem mais um tratamento, que poderia ser de 3, 5, 9 ou 12 dias consecutivos. Eramos quase uma grande família.

De entre tantos casos que me marcaram, houve um em particular que irei recordar o resto da minha vida. É uma história de força de vencer, de luta, de amor, de desespero, de vitória. E é desta história que vou falar de seguida.

 

Uma quarta-feira de manhã, como tantas outras naquele 4º piso do edifício de Medicina, estava eu responsável pelos doentes da primeira enfermaria. Eram 5 camas, 5 doentes em tratamento de quimioterapia.

 

Nessa altura a pediatria só contemplava crianças até aos 14 anos (actualmente contempla até aos 18 anos), e na cama nº 4 estava um adolescente de 16 anos aos meus cuidados. Esse jovem adolescente estava a fazer quimioterapia para tratar um osteossarcoma (um cancro nos ossos muito agressivo) que lhe tinha sido diagnosticado precisamente no dia em que fez 16 anos…há coincidências tristes…

 

Vou chamá-lo de António, nome fictício.

 

Nessa quarta-feira o António foi a uma consulta, chamada a consulta de grupo. Era uma consulta multidisciplinar onde um grupo de médicos das diferentes especialidades tomavam decisões terapêuticas relativas aos casos clínicos apresentados. Era conhecida por muitos como “o tribunal” pois era a consulta em que se tomavam decisões, onde se transmitiam diagnósticos, onde se propunham tratamentos, enfim, onde se decidiam vidas, onde se davam “sentenças”. O António, na sua cadeira de rodas, foi a essa consulta, sozinho, pois foi uma decisão necessária de última hora e os pais não sabiam que tal estava a acontecer. A quimioterapia não estava a ter o efeito desejado sobre a doença, que levava “a melhor” sobre a vida do António.

 

Lembro-me de o ver sair do elevador, na sua cadeira de rodas, cabeça baixa sem uma palavra, sem o sorriso tão característico em si. Não foram precisas palavras de quem já se conhecia quase como um irmão mais novo…as noticias eram más…

 

Apenas me disse: “Preciso de me deitar…”. Ajudei-o a deitar-se. As lágrimas corriam-lhe pelas faces e os olhos já tão cansados de tanto chorar fecharam-se. Tentou descansar, tentou abstrair-se do pesadelo que o atormentava. Fiquei em silêncio ao seu lado, pois era a única coisa possível de se fazer.

 

Quase nuns instantes seguintes chega a hora das visitas. A mãe do António foi das primeiras pessoas a chegar nesse dia.

 

Abeirou-se da cama e beijou carinhosamente o António, percebendo de imediato que algo não estava bem. O António sentou-se na beira da cama, ao lado da sua mãe e disse-lhe: “Fui a uma consulta e disseram-me que tinha que amputar a perna. A doença voltou.”.

 

A mãe entrou num choro desesperado, natural de quem é mãe. Com uma força indescritível no meio de tantas lágrimas, o António perguntou à mãe: “Preferes um filho vivo sem uma perna ou um filho morto com as duas pernas?”. Nesse momento tive que me afastar pois as minhas lágrimas já não mais se contiveram. Aquelas palavras saídas da boca de um adolescente, em sofrimento, mas com tanta força para ajudar a sua mãe a olhar para este problema de uma forma diferente, de uma forma que jamais julgaríamos pensar derrubou a minha pseudo-fortaleza emocional, onde me tinha refugiado para poder ajudar o António.

 

Essas palavras jamais sairão da minha memória.

 

Depois disso o António recuperou, com muito sofrimento, mas recuperou. Já escreveu um livro onde conta a sua história de vida. Conduz, joga basquetebol, já casou e tem filhos. Tem uma vida dita “normal”. É um vencedor!

 

É destes exemplos, destas lições de vida que precisamos para conseguirmos relativizar os problemas que nos vão surgindo na vida. Há sempre uma outra opção! JM

 

LÚCIA FERREIRA

 

psicóloga clínica

In “Jornal da Madeira"