Entrevista
Em entrevista ao SaúdeOnline, o médico especialista em gastroenterologia e hepatologia e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia fala sobre a hepatite C e reflete acerca do caminho a seguir para a eliminação da doença
Rui Tato Marinho | “A SPG desde há muitos anos que vê as hepatites víricas como um dos grandes problemas de saúde pública e individual”
SaúdeOnline | Hepatite C: no que consiste?
Rui Tato Marinho | A hepatite C é uma inflamação provocada por um vírus que afecta principalmente o fígado. Na grande maioria dos casos torna-se crónica, o vírus persiste no organismo por mais de seis meses. A importância reside na possibilidade de poder evoluir para cirrose, estado em que o fígado está cheio de cicatrizes, células mortas, com a estrutura desorganizada. Quem tem cirrose, tem risco elevado de evoluir para cancro do fígado.
SO | Existem dados epidemiológicos que permitam traçar um retrato da realidade portuguesa?
RTM | Não se conhece o número preciso de pessoas infectadas, apenas estimativas. Aliás, a grande maioria dos países não tem dados precisos e actuais. Sabemos, no entanto, que haverá ainda alguns milhares de pessoas infectadas que ainda não o sabem – quem foi ou é consumidor de drogas tem elevada probabilidade de estar infectado (60-80%) – e alguns podem ter já cirrose. O mais importante é identificar quem possa estar infectado e tratar todos os casos. O teste a realizar é uma análise ao sangue muito simples, comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), e realizada em todos os laboratórios, chamada anti-VHC.
SO | Quais são os fatores de risco para esta condição?
RTM | Os fatores de risco são vários: o consumo de drogas, as transfusões realizadas antes de 1992, as relações sexuais desprotegidas com múltiplos parceiros e o contacto regular com sangue infetado. No entanto, queremos chamar a atenção que, em cerca de um quarto dos infectados, não se identifica os fatores de risco clássicos.
SO | Quais são as limitações de um doente com hepatite?
RTM | Na grande maioria dos casos, a pessoa infetada não tem sintomas. Noutros casos, pode existir fadiga, o que é muito inespecífico. Se a doença estiver numa fase avançada – chamada cirrose descompensada – pode aparecer icterícia (olhos amarelos), vómitos com sangue (rotura de varizes do esófago), líquido na cavidade abdominal (ascite ou “barriga de água”), alterações mentais (encefalopatia hepática), infeções graves (septicemia), entre outros.
SO | Em termos de prevenção, quem são os principais alvos e que medidas preconiza que devem ser adotadas?
RTM | De momento é muito importante insistir na redução de riscos no ambiente do consumo de drogas. Todo o material usado no consumo tem de ser de uso individual. Por outro lado, o uso de preservativo deve ser fortemente promovido em relações de risco. Em adição, esta é uma excelente oportunidade para se promover um “fígado saudável”: eliminar a hepatite C, reduzir ou abandonar o consumo de álcool, vacina contra a hepatite B e a hepatite A, evitar fígado gordo (evitar obesidade, controlar a diabetes e o colesterol se estiver elevado, fazer dieta), fazer exercício físico (pelo menos andar rápido 30 minutos 3 vezes por semana) e tomar 2 a 3 cafés por dia.
SO | No que diz respeito ao tratamento, qual é o caminho a seguir?
RTM | No nosso entender, deve tratar-se todas as pessoas com hepatite C, independentemente do grau de fibrose. Ou seja, mesmo os que não têm o fígado com muitas lesões devem ser tratados. Os benefícios são múltiplos: impede-se a transmissão de uma doença infecto-contagiosa, evita-se a evolução para cirrose e, naqueles com cirrose, reduz-se de forma significativa a evolução para cancro do fígado e o aparecimento de complicações. A eficácia na eliminação do vírus é superior a 95% com os novos antivíricos orais. É a única infecção crónica vírica e oncogénica (risco de evolução para cancro) que o Homem é capaz de curar. O VIH e a hepatite B crónica não se curam, apenas se conseguem controlar, o que já é excelente.
SO | Desde 2010 que é assinalado o Dia Mundial de Combate à Hepatite. O objetivo passa por consciencializar a população para esta doença. As pessoas têm consciência do que é a hepatite?
RTM | Ainda há muito trabalho a fazer, principalmente nos jovens. Mas já se tem trabalhado muito nesse sentido para dar a conhecer o que é a doença, os seus sintomas e os tratamentos disponíveis.
SO | Qual o trabalho que tem sido desenvolvido pela SPG nesta área?
RTM | A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia desde há muitos anos que vê as hepatites víricas como um dos grandes problemas de saúde pública e individual. Já muito antes da descoberta do vírus da hepatite C, que foi em 1989, o vírus da hepatite B foi identificado no final da década de 60. É meio século de experiência em hepatites, sempre com grandes novidades. As hepatites víricas (A, B, C, D, E) sempre foram fonte de muitos trabalhos de investigação, publicações científicas, congressos e reuniões científicas. Temos contactos estreitos com os melhores especialistas a nível mundial e temos participado em ensaios clínicos dos fármacos inovadores que revolucionaram o tratamento da hepatite C.
SO | Para onde devemos olhar para efetivamente falarmos da erradicação da doença?
RTM | Não é possível erradicar a doença em termos de saúde pública. Erradicar não é o termo correcto. Podemos erradicar o vírus num determinado indivíduo, ou seja, eliminá-lo do organismo para toda a vida. Mas, em termos de saúde pública, o termo mais correcto é: eliminação da hepatite C como um importante problema de saúde pública em 2030.
SO | Por outro lado, será que existe a consciência do estigma que durante muito tempo assombrou estes doentes que não tinham esperança?
RTM | Assistimos ao longo da nossa vida a histórias de pessoas que acabaram com relações pessoais, perderam empregos, e até alguns casos de suicídio. O estigma pode ser muito grande, semelhante ao VIH e à hepatite B. É muito importante desmistificar a doença, informar sobre as formas de contágio individual, sobre as consequências da doença e o que a Medicina pode fazer (muito, pode salvar vidas) por quem está infectado. Em mais de 95% dos casos conseguimos eliminar de forma definitiva o vírus e, mesmo naqueles em que a doença já evoluiu para formas mais graves, há muito a fazer. Portugal está muito avançado no tratamento das doenças do fígado.
Rui Tato Marinho |
In “Jornal Económico”