Vivemos uma crise de participação cívica e de envolvimento social. Pode a atividade física ser também uma expressão de cidadania? Ao sermos “ativos”, estamos a fazer uma escolha pela nossa saúde e bem-estar mas também a assumir uma responsabilidade pelo meio-ambiente e pela sociedade que integramos.

 

Portugal tem níveis reduzidos de prática de atividade física. As consequências são conhecidas e incluem graves problemas de saúde pública, como a obesidade infantil e a diabetes. Habitualmente, olhamos para o cidadão, individualmente, como a fonte do problema, procurando razões na falta de motivação ou numa má gestão do tempo como fatores que impossibilitam ou dificultam a inclusão de mais atividade física no dia-a-dia. Contudo, existe uma estatística, presente em praticamente todos os países, que contraria esta tese. Tal como acontece com a obesidade e muitos outros problemas de saúde, a inatividade física é substancialmente mais prevalente nas pessoas com um nível educacional e socioeconómico mais baixo

 

Considerando a generalização das oportunidades para fazer atividade física, as questões económicas não explicam tudo. Colocam-se também questões educacionais e culturais. Não é coincidência que os países do centro e norte da Europa, com os melhores índices de desenvolvimento social e económico sejam também os países com os níveis mais elevados de atividade física. Não por acaso, estes são também os países onde a disciplina de Educação Física é mais valorizada. Estes são também os melhores exemplos do que poderíamos chamar países com elevada literacia física. De facto, é na escola que todas as crianças e jovens, sem exceção, podem desenvolver a sua literacia física, de forma tendencialmente gratuita, com recurso a programas curriculares rigorosamente testados, em instalações adequadas e sob a supervisão de professores especialistas com preparação adequada.

 

O que é a literacia física?

 

Será óbvia para o leitor a associação entre o conceito de literacia e a capacidade de ler, escrever e contar. É frequente referirmo-nos desta forma ao nível de alfabetização de um cidadão. Mas trata-se de mais alguma coisa. A United Nations Education, Scientific, and Cultural Organization (UNESCO) assinala que a literacia envolve também a forma como comunicamos nas interações sociais que estabelecemos, envolvendo o nosso conhecimento, linguagem e cultura.

 

A International Physical Literacy Association (IPLA) descreve o conceito de literacia física como a motivação, confiança, competência física, conhecimento e compreensão de um indivíduo que lhe permite de forma autónoma valorizar e assumir a responsabilidade de se envolver em atividades físicas ao longo de toda a vida. Um indivíduo alfabetizado fisicamente tem uma noção boa de si próprio, da sua integração no mundo e do valor da prática das atividades físicas. A literacia física é algo que se aprende e não é um dom natural com que se nasce (muitas vezes referido como “o jeito”) para a prática da atividade física. Para isso, as aprendizagens escolares, nomeadamente na disciplina de Educação Física são muito importantes.

 

Um indivíduo fisicamente culto é capaz de se movimentar com determinação, economia e confiança numa grande variedade de situações fisicamente desafiantes, envolvendo um vasto leque de formas de atividade física. Tem a possibilidade de ocupar ativamente os momentos de

 

lazer, praticando desporto e atividade física, explorando e respeitando os recursos naturais, de conhecer mais profundamente o fenómeno desportivo e de sobre ele desenvolver um pensamento crítico.

 

Vida ativa como expressão de autonomia e cidadania

 

Vimos já como a promoção de uma vida ativa e saudável é apanágio do desenvolvimento cultural das sociedades, traduzindo-se no enriquecimento do exercício da cidadania. Uma cidadania ativa exige a possibilidade da partilha entre os elementos de uma comunidade de práticas com benefício mútuo, em prol de uma sociedade participada por todos os indivíduos que a integram. Ser(-se) ativo implica a disponibilidade e o desejo individual para assumir responsabilidades para com o seu desenvolvimento pessoal, do meio ambiente, e o da sociedade em que se integra. A cidadania ativa é uma forma de literacia, na medida em que implica que o cidadão esteja consciente do que acontece à sua volta, o que supõe o conhecimento e a compreensão que lhe permita desenvolver juízos informados, e ter a habilidade e a coragem para agir de forma apropriada, individualmente e coletivamente.

 

Uma vida ativa traduz-se pela realização do potencial de cada indivíduo como pessoa, aos níveis intelectual, emocional, social e físico, de modo a que se sinta bem consigo próprio e com o facto de ter objetivos e propósitos para a vida, sendo que esta característica está mais presente em indivíduos que assumem a responsabilidade pela promoção da sua saúde e envolvimento na prática regular de atividade física. Um cidadão ativo é alguém que adota um estilo de vida saudável, ou seja, uma vida participada, ocupada, com qualidade e bem-estar, e que pugna empenhadamente pela generalização dessas condições a todos os seus concidadãos, implicando uma atitude que se opõe ao sedentarismo, desocupação, degradação

 

e mal-estar.

 

MARCOS ONOFRE e PEDRO TEIXEIA

 

Professores da Faculdade de Motricidade Humana, Universidade de Lisboa

 

In “Público”