Venho escrever-te ao fim destes seis meses de grande amizade.”
A anorexia nervosa tem uma prevalência em Portugal na ordem dos 0,4%, afetando sobretudo mulheres. Os primeiros sinais surgem no período pós-pubertário e início da adolescência, mas é entre os 15 e os 19 anos que a maioria procura ajuda e tratamento.
“Lembro-me de todas as promessas que me fizeste, de tudo aquilo que disseste que ia melhorar, se eu te seguisse. Disseste-me que as pessoas iam gostar de mim e que eu não me sentiria insegura; disseste-me que eu ia ter confiança em mim própria, (…) que ia conseguir ter tudo o que queria (…), que me ias dar forças para superar todos os obstáculos (…).”
A doença, que parece da comida e do corpo, projeta na imagem física, nas alterações pubertárias, no desenvolvimento do corpo sexualizado os problemas e as soluções. Promete um poder e um autocontrolo nunca antes sentido, nunca antes conseguido. Uma energia inesgotável, uma ferramenta e uma arma… Uma esperança e uma fé. Traz um sentido e uma missão. Uma identidade para uma identidade perdida. Uma forma de vida e um objetivo a quem se sentia perdido. Cria um sistema de crenças distorcido, mas forte e impenetrável. A razão desaparece nas emoções e nas certezas que a anorexia oferece. A perceção altera-se: a imagem que se vê no espelho já não é a imagem real. A imagem real perde-se na angústia, no desespero e na culpa… Na depressão.
Instala-se o equívoco: vivo para emagrecer, cumpro todas as regras da anorexia, mas não sinto a leveza, a alegria prometidas. E o ciclo reforça-se. É preciso perder ainda mais peso. Não foi suficiente. Nunca vai ser…
“Acreditei piamente que todos os teus esquemas de perca de peso me levariam a uma vida melhor! Renunciei a tudo aquilo de que gostava... (…) Aprendi a esconder-me dos outros enquanto comia, a comer o menos possível, a ter vergonha de comer, a sentir-me suja quando o faço!”
É na terapia, centrada primeiro na reeducação alimentar e na recuperação física, depois na reorganização psicológica (emocional e cognitiva), que se consegue abrir uma brecha. O início da resistência contra a ditadura anoréxica. A oposição à propaganda da anorexia, inicialmente frágil, encontra no espaço terapêutico a voz interior da esperança.
“Decidi que não quero mais ser tua amiga. Contudo, sei que é mais fácil falar do que fazer e tem sido muito difícil separar-me de ti. (…) Suspeito, com muito medo e incerteza, que um bocadinho de mim talvez ainda acredite em ti.” (...) “Eu quero, eu quero sair desta prisão.”
A psicoterapia desenvolve-se na contestação das verdades absolutas que a anorexia, lenta e pacientemente, implantou nas inseguranças do jovem em mudança. Que o corpo magro trará a aceitação e a felicidade. Que é possível não crescer e permanecer embalado nos braços da infância. Que se podem impedir as mudanças tão difíceis como necessárias. Que a autonomia é uma fatalidade e que os filhos se perdem dos pais nesse processo.
“Sussurraste-me ao ouvido todas estas mentiras, primeiro muito baixinho e sem eu perceber. Convenceste-me devagar, iludiste-me de mansinho, persuadiste-me habilmente. Mudaste todas as minhas ideias, mudaste o meu feitio, as minhas prioridades, a minha personalidade. Disseste-me que já não ia olhar para o mundo com medo, que já não ia olhar para o passado com saudade, que ia gostar de crescer e de seguir em frente, que não me ia sentir sozinha.” (...) “Deixa-me aprender e crescer como os outros (…).Deixa-me conhecer o mundo e conhecer-me a mim própria!"
Não existe nenhuma outra fase da vida como a adolescência em que aconteçam mudanças tão significativas de forma tão abrupta. O ser anterior desaparece para originar um novo. Uma metamorfose sem casulo. Dentro do corpo em mudança contestam-se as verdades, os dogmas, os valores, as posições, a moral, as relações, o amor. Uma viagem sem destino conhecido, como um ritual ancestral de passagem para a vida adulta. Tanto medo de falhar…
“Tenho medo de quando me libertar de ti não ser capaz de ser feliz e aí não haverá desculpa, porque sou livre. Então terei falhado e eu tenho muito medo de falhar. Por isso acho que me agarrei a ti como uma desculpa e tenho medo de não querer largar-te por isso. (...) Tenho medo de tudo – medo de te deixar, medo de não te deixar, medo de não te querer deixar."
A anorexia nervosa é uma força de bloqueio ao desenvolvimento normal. No entanto, é uma doença com tratamento: a maioria dos doentes recupera com remissão quase total dos sintomas. É frequente que se mantenha a preocupação com o corpo e com as mudanças físicas, mas que desapareçam as crenças mais disfuncionais e limitativas, a obsessão com a magreza e o risco de vida. A intervenção psicoterapêutica tem de integrar a família e deve acontecer o mais precocemente possível. São fatores essenciais para um bom prognóstico. São fatores fundamentais para se voltar a crescer.
“Vou ser feliz, não és tu quem me vai impedir. Vou ser feliz tal como sou, vou-me aceitar e vou ser aceite. (…) Eu tenho de conseguir, porque a maneira como vivo agora não é maneira de se viver. Não és minha amiga, nunca o foste, e eu demorei tempo demais a percebê-lo.
"Margarida”
Rui Martins – Psicólogo clínico e terapeuta familiar do CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Margarida – ex-criança e atualmente mulher
Nota – As citações foram transcritas do original sem alteração.
In “Público”