Autismo: o que é e o que não é

 

Continua a ser para a maioria das pessoas uma doença desconhecida, envolta em mistério e sobre a qual muitos mitos persistem. Os especialistas preferem hoje falar de perturbações do espectro do autismo e não de autismo como uma entidade única e uniforme.

 

O autismo continua a ser para a maioria das pessoas uma doença desconhecida e envolta em mistério. Inevitavelmente, são muitos os mitos que persistem no imaginário colectivo relativamente ao autismo. O autismo é exclusivamente uma doença da infância? O autismo resulta da frieza afectiva das mães? O autismo pode ser provocado pela vacinação? As pessoas com autismo são frias, desprovidas de afectos e indiferentes aos sentimentos dos outros?

 

Autismo ou autismos?

 

O autismo afecta cerca de 1% da população mundial e é 5 a 10 vezes mais frequente em rapazes do que em raparigas. É uma perturbação do neurodesenvolvimento, o que significa que está presente desde o nascimento, embora geralmente seja detectada entre os dois e os cinco anos de vida. O autismo persiste ao longo de toda a vida e pode até suceder que apenas seja diagnosticado na idade adulta. As manifestações principais são a dificuldade em estabelecer relações sociais recíprocas, os défices na capacidade de comunicar e a restrição de interesses com sobreenvolvimento em actividades repetitivas. Estas manifestações nucleares podem surgir associadas a uma grande variedade de outras características clínicas. Alguns indivíduos nunca desenvolvem linguagem e apresentam um atraso importante do desenvolvimento cognitivo, enquanto outros apresentam uma linguagem precocemente sofisticada e uma capacidade intelectual fora do comum. Por essa razão os especialistas preferem hoje falar de perturbações do espectro do autismo e não de autismo como uma entidade única e uniforme.

 

O autismo resulta de uma perturbação do normal desenvolvimento do cérebro. Os mecanismos neurobiológicos que o originam são ainda em grande parte desconhecidos. Contudo, sabemos que os factores genéticos têm um peso crucial. São múltiplos os genes envolvidos e, excepto numa minoria de casos, a presença de apenas um gene de risco não é suficiente para fazer surgir a doença. Além dos factores genéticos, estão também envolvidos factores ambientais, como por exemplo acidentes obstétricos, infecções in utero ou exposição pré-natal a substâncias tóxicas.

 

Curiosamente, a procura da origem do autismo alimentou algumas das mais tristemente célebres fraudes científicas da História da Medicina. Uma das mais perniciosas pelo alcance das suas consequências foram os escritos de Bruno Bettelheim, autor da ideia de que o autismo resultava da indisponibilidade afectiva das mães, as célebres mães-frigorífico. Mais tarde desmascarado como um impostor que inventou praticamente tudo o que escreveu, Bettelheim veio a suicidar-se, embora o mito prevaleça até hoje e contribua para a recriminação injusta de muitas mães e pais de crianças com autismo. Uma outra fraude célebre relacionada com autismo é o estudo que relatou uma associação entre a vacina do sarampo e o autismo. Assente em dados inteiramente inventados, este estudo foi oficialmente apagado pela revista científica que o publicou e o autor do estudo foi impedido de exercer medicina no Reino Unido. Estudos sérios e de grande dimensão conduzidos posteriormente não encontraram qualquer associação entre autismo e vacinação. Apesar disto, muitos pais continuam a preferir não vacinar os seus filhos por medo desta associação totalmente inventada.

 

O autismo tem tratamento?

 

Assim como há autismos e não autismo, não existe um tratamento único, mas sim inúmeras intervenções terapêuticas que se têm revelado úteis. Importa aqui esclarecer que não existe tratamento farmacológico ou biológico para o autismo. As intervenções psicoterapêuticas e reabilitativas que demonstraram alguma eficácia são muito variadas, contudo nenhuma se adapta a todos os casos e nenhuma consegue resolver todos os aspectos desta complexa doença. A abordagem ideal é multidisciplinar e adaptada às necessidades específicas de cada indivíduo e de cada uma das suas fases do desenvolvimento.

 

As pessoas com autismo não têm sentimentos?

 

Este é um mito muito comum sobre o autismo. As dificuldades de comunicação, o aparente desinteresse pelos outros, a mímica pobre, a postura rígida e a dificuldade em tolerar o contacto físico são frequentemente interpretados, erradamente, como sinal de frieza afectiva. Na realidade, as pessoas com autismo são extraordinariamente sensíveis ao afecto e à rejeição. Muitas pessoas com autismo procuram activamente estabelecer amizade com outros, mas são inábeis e ingénuos na sua abordagem. Ainda assim, muitos estabelecem relações amorosas, casam e têm filhos. Os afectos, a alegria e a tristeza estão presentes nas suas vidas e não são menos intensos do que nas vidas de todos nós, apenas se manifestam de uma forma diferente, original, e muitas vezes difícil de decifrar.

 

Bernardo Barahona Corrêa, psiquiatra e director científico do CADIn

 

In “Público”