O Expresso divulga o documento com indicações relativas ao atual surto de hepatite A fornecido a médicos e enfermeiros do sistema nacional de saúde

Considerando o recente aumento do número de casos de hepatite A notificados na Europa e em Portugal, emitem-se, à luz da evidência científica atual, orientações para os profissionais de saúde atualizadas de acordo com a documentação técnica publicada pelo European Center for Disease Prevention and Control (ECDC), entre outros.

A atividade epidémica recente tem sido relacionada com comportamentos associados ao agora designado chemsex (atividade sexual potenciada por substâncias químicas, podendo envolver múltiplos parceiros).

1. Introdução

A hepatite A é uma infeção aguda, causada por um vírus ARN, membro do género Hepatovirus, da família dos Picornaviridae, conhecido por vírus da hepatite A (VHA).

2. Situação epidemiológica na UE/EEE e em Portugal

Em 2015, foram notificados por 30 países, incluindo Portugal, 12 527 casos confirmados de hepatite A no quadro do Sistema Europeu de Vigilância (TESSy).

A situação epidemiológica em Portugal modificou-se, sobretudo, a partir de 1980, altura em que grandes obras públicas de saneamento tiveram lugar. Houve uma redução progressiva da incidência da doença e do risco de adquirir a doença. O País é atualmente considerado uma área de baixa endemicidade, à semelhança dos outros países da Europa Ocidental. À medida que se reduz a endemicidade da doença, aumenta o número de crianças mais velhas, adolescentes e adultos suscetíveis que, geralmente, apresentam sintomas quando adquirem a doença. Assim, paradoxalmente, o número de casos notificados pode aumentar.

Dados ainda provisórios do último Inquérito Serológico Nacional, realizado pelo Instituto Ricardo Jorge em 2015-2016, indicam que na população abaixo dos 30 anos, menos de 20% apresenta anticorpos IgG contra o VHA. Estes valores contrastam com a elevada prevalência de anticorpos IgG na população com 55 ou mais anos de idade, com valores na ordem dos 93%.

3. Manifestações Clínicas

A infeção por VHA pode ser assintomática, subclínica ou provocar uma doença aguda, autolimitada, associada a febre, mal-estar, icterícia, colúria, anorexia, náuseas, vómitos e dor abdominal1.

A frequência de sintomas depende, em regra, da idade do doente, uma vez que a infeção só é sintomática em 30% dos casos com idade inferior a 6 anos1,2. Em crianças mais velhas e adultos a infeção, geralmente, provoca doença clínica em mais de 70% dos casos3.

A gravidade da doença aumenta com a idade podendo haver evolução mais grave sobretudo em pessoas que tenham subjacente uma doença hepática crónica como esteatohepatite (alcoólica ou não-alcoólica), cirrose ou hepatite B ou C crónicas4,5,6,7. A hepatite fulminante com necrose hepática é rara, ocorrendo em menos de 1% dos casos4,8. A letalidade é de 0,3-0,6%, mas aumenta com a idade atingindo 1,8% em doentes com mais de 50 anos9. A infeção não evolui para a cronicidade e, provavelmente, provoca imunidade para toda a vida2.

4. Modos de Transmissão

O principal modo de transmissão é por via fecal-oral, através de fonte comum por ingestão de alimentos ou água contaminados ou por contacto pessoa a pessoa. A transmissão através da exposição sexual tem sido descrita, nomeadamente associada a surtos em homens que fazem sexo com homens (HSH).

Estão, igualmente, documentadas outras formas, mais raras, de transmissão.

5. Período de incubação e de infectividade máxima

O período médio de incubação é de 28-30 dias, variando de 15 a 50 dias11. A infectividade máxima ocorre na segunda metade do período de incubação (isto é, enquanto a infeção é ainda assintomática) e a maioria dos casos é considerada não infeciosa após a primeira semana de icterícia.

O vírus da hepatite A é eliminado nas fezes em elevadas concentrações desde 2 a 3 semanas antes até uma semana após o aparecimento dos sintomas12.

6. Diagnóstico

O diagnóstico é estabelecido através da deteção de anticorpos anti-VHA IgM. Estes anticorpos são detetáveis no início da fase sintomática, atingem o seu pico durante a fase aguda ou de convalescença, e permanecem detetáveis aproximadamente durante 3 a 6 meses. Os anticorpos anti-VHA IgG aparecem na fase de convalescença e mantêm-se durante décadas, estando associados a imunidade protetora. A deteção de anti-VHA IgG na ausência de anti-VHA IgM reflete uma infeção passada ou vacinação, e não infeção aguda. A deteção de anti-VHA IgM na ausência de sintomas pode refletir uma infeção antiga com persistência prolongada de IgM, um falso-positivo, ou uma infeção aguda assintomática (mais frequente nas crianças com idades inferiores a 6 anos)13,14.

O recurso a técnicas de biologia molecular não está, por norma, indicado, exceto se em situação de surto e por forma a facilitar a caracterização epidemiológica do natureza do mesmo, permitindo o conhecimento dos clusters.

Perante um diagnóstico de hepatite A, o médico deve notificar o caso no SINAVE (https://sinave.min-saude.pt/sivdot/login.aspx).

7. Tratamento e medidas de controlo

Não existe tratamento específico para a infeção por hepatite A. A ingestão de álcool é totalmente desaconselhada e os fármacos com metabolização hepática ou que possam ser hepatotóxicos, devem ser utilizados com precaução2.

Medidas de controle estritas, como a higiene pessoal, familiar e doméstica, com particular ênfase na lavagem das mãos mostraram-se altamente efetivas no controlo da transmissão.

A identificação de contatos próximos na perspetiva da sua proteção, pode impor imunização passiva e ativa em pessoas expostas. Estas medidas podem revelar-se eficazes na redução da transmissão.

Assim, pessoas com reconhecida exposição recente ao VHA, previamente não vacinadas, devem receber profilaxia pós-exposição com imunoglobulina (0,02 mL/kg) ou com uma dose única de vacina anti-VHA, o mais precocemente possível e no prazo máximo de duas semanas após a exposição.

Em pessoas saudáveis, com idades entre 12 meses e 40 anos, a vacina anti-VHA é preferível à imunoglobulina, uma vez que induz imunidade ativa e maior durabilidade da proteção, sendo mais fácil de administrar, e de mais fácil acesso. Em pessoas de idade igual ou superior a 41 anos (particularmente adultos ≥75 anos), a imunoglobulina é preferida devido aos dados limitados sobre o desempenho da vacina nesta faixa etária, e devido às manifestações mais graves da hepatite A em adultos mais velhos. Caso a imunoglobulina não esteja disponível, a vacina pode ser utilizada. Em crianças com menos de 12 meses de idade, pessoas com compromisso imunitário, com doença hepática crónica ou com contraindicações à vacinação, deve utilizar-se a imunoglobulina (0,02 mL/kg)15,16.

8. Pessoas em maior risco de adquirir hepatite A

Estão em maior risco de adquirir VHA pessoas vulneráveis (não imunizadas, por vacinação ou infeção natural) que:

* Se desloquem para áreas de endemicidade intermédia ou elevada;

* Ingiram alimentos/água contaminados;

* Apresentem défices de fatores da coagulação;

* Homens que fazem sexo com homens (HSH).

Entre fevereiro de 2016 e fevereiro de 2017, três clusters envolvendo 287 casos confirmados de hepatite A foram reportados, em 13 países da UE, incluindo Portugal. A quase totalidade dos casos ocorreu entre HSH, sendo o contacto sexual o principal modo de transmissão.17

 

In “Expresso”