Relatório que trata a situação do país em matéria de drogas e toxicodependências aponta aumento dos consumos de cannabis entre os 2024 novos utentes que iniciaram tratamento em 2015.
O director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD), João Goulão, resumiu esta quarta-feira numa frase a situação do país em matéria de drogas e toxicodependências: “Houve um elevado número de pessoas que viram desmoronar a sua vida como um baralho de cartas”. Na prática, quer isto dizer que muitos antigos toxicodependentes, recaíram nos consumos, sobretudo de heroína, à medida que a crise e o desemprego foram desagregando o entorno familiar e comunitário que os ajudava a manterem-se abstinentes.
Durante a apresentação do relatório de 2015 sobre a situação do país em matéria de drogas na comissão parlamentar de Saúde, o director do SICAD apontou o impacto da crise como principal explicação para o facto de, entre 2014 e 2015, ter aumentado o número de novos utentes tendo a heroína como droga principal. Apesar de a cannabis continuar a ser a principal droga de consumo entre os 2024 novos utentes que iniciaram tratamento em 2015, a heroína surgiu como a droga de eleição entre os 1365 utentes que, naquele ano, foram readmitidos no sistema, continuando, de resto, a ser a substância mais referida pelo universo total dos 26.993 utentes em tratamento.
“Há toxicodependentes que estão a faltar às consultas por falta de apoio”
São – caracterizou Goulão – “pessoas com fraca resistência à frustração e que buscam nas substâncias ilícitas um alívio do sofrimento”. Algumas ter-se-ão mesmo “virado para actividades de tráfico como forma de subsistência”, havendo uma “população crescente” a consumir em “contextos de desorganização” que nada devem às imagens que ficaram desde os tempos do Casal Ventoso, em Lisboa, ou do Bairro S. João de Deus, no Porto.
Aumento do consumo?
Poder-se-á assim falar num recrudescimento do consumo de heroína? “Visto a partir do terreno, das zonas mais difíceis das cidades, nunca considerei que o problema da heroína tivesse ficado resolvido”, introduz o especialista em comportamentos desviantes Luís Fernandes. Para este psicólogo, nos anos mais recentes o consumo de heroína regrediu sim, mas apenas no discurso político e mediático. “Acho que o problema da heroína foi menorizado por estratégia política, por exemplo, para se poder dizer que as salas de consumo não são precisas, para não gastar mais dinheiro em redução de riscos e minimização de danos e, por último, para mostrar a eficácia do dispositivo de combate à droga”. Dito isto, Luís Fernandes recusa a ideia de aumento também porque não há registo de novos consumidores desta substância, mas verifica-se a manutenção dos velhos consumidores, agravada pelas recaídas que as estatísticas reveladas esta quarta-feira evidenciam.
“O que vemos não são novos consumidores de heroína”, confirma Purificação dos Anjos, psicóloga na Comissão de Dissuasão do Porto, “mas pessoas com idade avançada e histórias de consumos problemáticos anteriores, na juventude, por exemplo, e que agora, por causa da crise e do desemprego, recaem na utilização desta substância”. Muitos destes heroinómanos mantinham-se “limpos” à custa “do entorno familiar e comunitário”, acrescenta a psicóloga. O que a crise fez foi “desagregar estes entornos”.
O retrato que o psiquiatra João Curto traça a partir de Coimbra, onde dirige a comissão local de dissuasão, não difere muito. “O recrudescimento, que não é dramático mas existe, existe principalmente entre os consumidores que estavam abstinentes e que, com as situações de crise, voltaram a recorrer a opiáceos”, aponta, para acrescentar que “para cima de 50% dos doentes em tratamento [em Coimbra] vão sobrevivendo à custa do apoio dos familiares e isso acontece porque a sociedade ainda aceita mal a empregabilidade de indivíduos com problemas de adicção”. São indivíduos cuja média de idades oscila “entre os 40 e os 42 anos”.
Dependentes de cocaína recorrem à heroína
Por outro lado, João Curto sustenta que o consumo de heroína surge também associado ao aumento da dependência de cocaína. “As pessoas que consomem cocaína tendem, em determinada altura, a recorrer aos consumos esporádicos de heroína para atenuar a excitabilidade e a ansiedade crescentes. Como a heroína é fortemente adictiva…”.
Sem grandes inversões de tendências relativamente aos anos mais recentes (e embora sem dados actualizados relativamente às prevalências de consumo entre a população geral), o relatório do SICAD confirma que a cannabis foi a principal droga de consumo entre 51% dos 2024 toxicodependentes que iniciaram tratamento em 2015.
Aqui “falamos já em jovens adultos, entre os 18 e os 20 e poucos anos, e que, em regra apresentam perturbações temporárias e circunstanciais como diminuição da memória e da capacidade de concentração”, caracteriza João Curto. Nalguns casos mais esporádicos, o tratamento devido ao uso de cannabis pode requerer internamento. “Nalguns casos de consumos de cannabis sintéticas, com grande percentagem de THC, que é a substância psicoactiva intensa que provoca efeitos psicogénicos, pode haver necessidade de internamento, mas estamos sempre a falar de consumos acima de 11 gramas por dia”, precisa o psiquiatra, para lembrar que “não há estudos que falem dos efeitos a longo prazo” decorrentes do consumo desta substância.
Para Luís Fernandes, o aumento dos consumidores de cannabis nas estruturas de tratamento acontece, não tanto por causa dos níveis de dependência ou das consequências desta substância na saúde, mas porque há mais gente a consumir. “Sabemos como a movida nocturna tem vindo a tornar-se num local de festa permanente e a cannabis está na festa. Se a PSP decide encaminhar alguém que apanhou a fumar um charro para uma comissão de dissuasão, esta faz uma avaliação do risco e, se considerar que o jovem está em risco de se tornar um consumidor regular, encaminha para o tratamento”. Em síntese, “a cannabis está praticamente normalizada nas práticas recreativas do lazer nocturno, no party people da noite, e por isso é mais alta a probabilidade de aumentarem os consumidores problemáticos”.
Fonte: Público