Pela primeira vez, estabeleceu-se uma ligação directa entre o número de cigarros fumados e o número de mutações que isso provoca no ADN e que, mais tarde, poderão terminar em cancro.

 

Que o tabaco mata já não é novidade. Que o cancro é causado por mutações no ADN também já se sabia. O que agora se encontrou pela primeira vez foi uma relação directa entre o número de cigarros fumados e o número de mutações no ADN. Se fumar um maço de cigarros por dia, ao fim de um ano terá provocado nas células dos seus pulmões, em média, 150 mutações genéticas, o que aumenta o risco de cancro – conclui este trabalho publicado esta sexta-feira na revista Science.

 

Se há produto constituído por substâncias tóxicas e irritantes, é um cigarro. Ao todo, têm cerca de 7000 substâncias químicas, 70 das quais são cancerígenas. Nas estimativas da Organização Mundial da Saúde, todos os anos morrem pelo menos seis milhões de fumadores e até ao final deste século prevê-se que sejam mais de 1000 milhões.

 

Uma investigação científica coordenada pelo Laboratório Nacional de Los Alamos (Estados Unidos) e pelo Instituto Sanger (Reino Unido), em colaboração com investigadores do Japão, da Coreia do Sul, de Itália e da Bélgica, identificou algumas mutações genéticas provocadas pela exposição, tanto directa como indirecta, ao fumo do tabaco.

 

 Até agora, tínhamos um largo corpo epidemiológico sobre a relação do fumo com o cancro. Neste momento, também observámos e quantificámos as mudanças moleculares no ADN para quem fuma cigarros”, sublinha em comunicado um dos autores do estudo, Ludmil Alexandrov, investigador de Los Alamos.

 

Ao todo, a equipa sequenciou o genoma de 5243 cancros. Os cientistas conseguiram determinar que, entre as pessoas que tiveram aqueles cancros, havia 2490 fumadores e 1063 não fumadores e foram estes dois grupos que foram comparados. Quais são então as diferenças nas células dos fumadores e dos não fumadores? E a conclusão a que se chegou, usando um software para reconhecer padrões nas mutações genéticas, é que essas mutações são mais elevadas nos fumadores. Num vídeo, Ludmil Alexandrov explica a investigação.

 

O número de mutações nocivas causadas pelo tabaco é alarmante, sobretudo nas células dos pulmões, onde os cientistas contabilizaram as já mencionadas 150 alterações genéticas. “Este número é extremamente elevado e aumenta enormemente o risco de desenvolver cancro dos pulmões nos fumadores”, frisa Ludmil Alexandrov ao PÚBLICO.

 

Um maço de tabaco por dia também é responsável por mutações genéticas noutros órgãos ao final de um ano, concluiu ainda esta investigação: em média, 97 na laringe, 39 na faringe, 23 na boca, 18 na bexiga e seis no fígado.

 

Neste momento, o tabaco está ligado a 17 tipos de cancros. Ao longo do estudo, identificaram-se mais de 20 mutações específicas associadas a esses 17 cancros. Essas mutações são assinaturas deixadas no ADN pelo tabaco. Contudo, apenas cinco destas mutações são muito frequentes nos fumadores.

 

Uma dessas mutações genéticas, que os cientistas designaram como “assinatura 4”, resulta mesmo da exposição directa ao fumo do tabaco – ou seja, os danos no ADN são provocados por substâncias cancerígenas contidas no cigarro, como o benzopireno. “As mutações da assinatura 4 também detectadas em cancros da cavidade oral, faringe e esófago, embora em número muito mais pequeno do que nos cancros dos pulmões e da laringe, talvez devido a uma exposição mais reduzida ao fumo do tabaco”, lê-se no artigo científico.

 

Outra mutação salientada na investigação é a número 5. Previamente descoberta num outro estudo, também no Laboratório Nacional de Los Alamos, esta alteração vai geralmente ocorrendo em todas as células do corpo e com a regularidade conhecida de um relógio. Só que a mutação número 5 é mais rápida nos fumadores do que nos não fumadores, explica um comunicado do Laboratório Nacional de Los Alamos.

 

Saber para prevenir

 

 Os resultados são uma mistura de esperado e inesperado, e revelam um retrato dos efeitos directos e indirectos [do tabaco]. As mutações causadas por danos directos no ADN pelos carcinogénicos do tabaco foram observadas principalmente nos órgãos em contacto directo com o fumo inalado”, salienta outro dos autores do estudo, David Phillips, do King’s College de Londres.

 

E para quem é “apenas” um fumador social? Fumar um ou dois cigarros de vez em quando também origina mutações no ADN, responde-nos Ludmil Alexandrov. “Um simples cigarro pode causar algumas – embora muito poucas – mutações”, salienta o investigador. Mas o risco de as mutações provocadas pelo tabaco virem a resultar em cancro é menor. “Fumar 50 cigarros ao longo da vida resulta, em média, em uma mutação.”

 

Para além da relação entre o tabaco e o cancro, detectadas ao nível das mutações genéticas que o fumo provoca, este tipo de estudos pode ser aplicado para descortinar a genética envolvida noutros factores de risco oncológico, como a obesidade e a alimentação. “Poderá ser um contributo para a descoberta de outras causas de cancro”, diz ainda Ludmil Alexandrov.

 

Ter agora a noção do número de mutações genéticas causadas pelo tabaco pode também ser um argumento de peso usado na prevenção do tabagismo. Para Charlie McMillan, director do Laboratório Nacional de Los Alamos, este trabalho “impulsiona o uso de software de reconhecimento de padrões na monitorização genética e representa um avanço criativo na investigação do cancro.”

 

Mas nem sempre o tabaco foi considerado nocivo. Esta planta veio da América para a Europa, trazida na época dos Descobrimentos. Chegou a ser divulgada como uma planta medicinal extraordinária. Mascado ou inalado, só nos finais do século XIX o uso do tabaco em cigarros se expandiu na Europa.

 

E se hoje não há dúvidas dos seus malefícios, nem sempre a indústria tabaqueira assumiu essa realidade, como lembra o pequeno livro de divulgação Cancro Ponto e Vírgula, editado em 2015 pelo Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup). “Demoraram [indústria tabaqueira] cerca de 50 anos a admitir que o consumo de tabaco é prejudicial à saúde”, lê-se na publicação, onde se encontra a ilustração de um cigarro, ao qual se faz a “autópsia de um assassino”.

 

Teresa Serafim

 

Fonte: Público