ENTREVISTA
Sobrinho Simões, um dos principais patologistas do cancro ao nível mundial, fez o retrato do cancro em Portugal e abordou alguns problemas que afetam a qualidade da saúde e da medicina. Defende que seja criada uma instância de avaliação externa na Saúde que não tenha medo de punir quem faz mal
JM – Veio à Madeira para participar numa conferência do Núcleo da Liga Portuguesa Contra o Cancro, mas também esteve com alunos do Liceu. É importante tratar da prevenção do cancro desde as idades mais novas?
Manuel Sobrinho Simões –Claro. A prevenção do cancro é, antes de mais nada, educação para a saúde. E a prevenção do cancro felizmente é semelhante à prevenção da obesidade, da diabetes, das doenças osteoarticulares. Se você fizer uma boa prevenção da obesidade, comendo inteligentemente e fazendo exercício físico, faz simultaneamente prevenção da diabetes e do cancro. No caso do cancro, é fundamental não fumar, não se expor excessivamente ao sol, não trabalhar em indústrias que sejam muito poluentes. A prevenção começa na escola e não é só para o cancro, é para tudo.
JM – Mas, a doença que se fala cada vez mais é a do cancro, que é considerada a doença do século...
MSS – Sim mas, infelizmente, as pessoas esquecem-se. Somos dos países com maior número de diabéticos. Temos aumentado muito na obesidade. É verdade que as pessoas têm muito medo do cancro, que está também a aumentar muito – estamos a passar de uma em cada três para uma em cada duas pessoas com cancro ao longo da vida - mas, hoje em dia, 60 por cento das pessoas que têm cancro já não morrem da doença. Morrem às vezes com cancro, porque ainda têm a doença crónica, mas não propriamente de cancro. Por exemplo, no cancro da tiróide, 95 por cento dos casos têm cura.
JM – Quais são os cancros mais agressivos e mortais?
MSS – São os do pâncreas, sistema nervoso central, pulmão, estômago e fígado. São os cinco que matam muito.JM – Falou da obesidade e da diabetes. São os principais fatores de risco?
JM – Falou da obesidade e da diabetes. São os principais fatores de risco?
MSS – Esses dois fatores e a longevidade são horríveis. Pessoas que vivam muitos anos, que sejam obesas e diabéticas, quase de certeza absoluta que vão ter cancro.
JM – A Ciência já deu grandes avanços no combate às doenças oncológicas. Quem está a ganhar, a medicina ou o cancro?
MSS – Nalguns cancros está a ganhar a medicina, como os da mama, da próstata, da tiróide e do intestino. Nos mais agressivos, a medicina não está a ganhar. Como senão houvesse um cancro, houvesse por um lado cancros muito diferentes de órgão para órgão e, depois, cancros muito diferentes de pessoa para pessoa. Usamos a palavra “cancro” de uma maneira geral, mas devíamos dizer “cancros”.
JM – É preciso investigar mais as causas dos cancros que continuam a ganhar à medicina?
MSS – É o que todos nós queremos. Todos queremos investigar o cancro da cabeça, ou do sistema nervoso central, que é terrível. Tem-se avançado muito pouco. E estudar também o cancro do pâncreas que, não sei bem porquê, atinge mais as pessoas da classe média alta. Pode ser por causa de hábitos alcoólicos, associado à obesidade, pode ser que sejam mais fáceis de diagnosticar porque são pessoas que, à partida, vão mais ao médico.
JM – Em Portugal, tem havido investigação nestas áreas?
MSS – Tem. Apesar de tudo, em Portugal, há muita especialização em tiróide e estômago, pelo Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, do qual faço parte. O IPO do Porto é muito bom em cancro urogenital (rim, bexiga e próstata). Há vários sítios em Portugal muito bons em cancro da mama, como os hospitais de Santa Maria e o de São João. Há alguma especialização em Portugal, mas, por exemplo, não há nenhum bom em cancro do pâncreas, e não há em qualquer outra parte do mundo. Quanto aos tumores do sistema nervoso-central, o “São João” tem melhorado muito e o nosso instituto também, mas os resultados são poucos. É um cancro que é muito penoso. A cirurgia nunca pode ser completa.
JM – Há muitos cancros destes em Portugal?
MSS – Sim. Não são os mais frequentes mas também não são os menos frequentes. Os mais frequentes são mama na mulher, próstata no homem, pulmão em ambos os géneros e intestino. Depois estão os do estômago. Os cancros do sistema nervoso central não se comparam, são muito menos frequentes.
JM – O cancro não atinge apenas o doente, mas todo o seu núcleo familiar e de amizades...
MSS – Sim, o cancro faz sofrer ao lado. E tem repercussões complicadas. Os tratamentos chegam a ser agressivos, a pessoa fica diminuída, tem medo. Há algum agrupamento familiar. Se uma pessoa tem dois familiares próximos, como o pai e o avô, que tiveram, por exemplo, cancro da próstata, há uma probabilidade muito grande de também vir a ter. Tudo isso contribui para a ideia de que é uma doença que pode matar e que é, por isso, um terror.
JM – O Dr. especializou-se nos cancros do estômago e da tiróide. Porquê estas duas doenças?
MSS – O do estômago, foi porque havia muitos casos em Portugal. No nosso país, temos muitas infeções pela bactéria Helicobacter pylori, que já desapareceu do centro e norte da Europa, mas que nós ainda temos. Por causa dessa bactéria, nós temos muitos cancros de estômago em Portugal (incluindo a Madeira) e começámos a estudar esse cancro. Quanto à tiróide, também temos muitos casos no nosso país, que se deve à nossa proximidade do mar e do iodo.
JM – É possível eliminar essa bactéria?
MSS – É. O problema é que dos adultos portugueses, 75 a 80 por cento têm essa bactéria
E a maior parte deles têm mas não têm sintomas. Como vamos fazer? Vamos detetar toda a gente? Se o fizermos, teremos resistências ao tratamento, ou seja, formas da bactéria resistentes. Só tratamos mesmo quem tem uma história familiar de cancro ou quem tem sintomas, em que fazemos uma biopsia e vemos uma coisa que ainda não é um cancro mas pode caminhar para lá, se essa pessoa tiver a bactéria, então nós tratamos. Ou seja, só tratamos pelo historial familiar, pessoas com sintomatologia e pessoas com diagnóstico prévio.
JM – Na Madeira, a segunda maior causa de morte é o cancro (a primeira é ao nível das doenças cardiovasculares). Está dentro da tendência nacional?
MSS – Sim, está. Hoje em dia, em Portugal morrem 100 mil pessoas por ano, incluindo a Madeira. Desses 100 mil, 25 mil morrem por cancro. E há 30 e tal mil que morrem por doenças vasculares, cardiovasculares e acidentes vasculares-cerebrais.
PATOLOGISTAS NA MADEIRA MUITO BONS
JM – Conhece o trabalho desenvolvido na Madeira na área da oncologia?
MSS – Não, mas tenho apenas um conhecimento que é muito importante: os patologistas da Madeira são muito bons. Por isso, tenho a certeza que a qualidade do diagnóstico da patologia de cancro é muitíssimo boa.
JM – Muitas vezes, o cancro é invisível porque só é detetado em estado avançado. Como se pode inverter esta situação?
JM – Com rastreios e com diagnóstico precoce. O que devemos fazer? Primeiro, em relação aos cancros que são rastreáveis, como os do cólon, se você fizer endoscopias de dois em dois anos (varia com a idade), se tiver muita atenção aos sinais da pele, se fizer mamografias a partir de uma certa idade, diagnostica-se o cancro da mama precocemente. Esta é uma hipótese. A outra é sempre que há história familiar de cancro da mama, da próstata ou da tiróide, o que a pessoa deve fazer é rastreios mais ativa e mais precocemente. Com essas duas medidas, aumenta imenso o diagnóstico dos cancros iniciais, que devem ser tratados com cirurgia ou com radioterapia.
JM – À partida, parece fácil...
MSS – O problema, não em Portugal mas nos países muito desenvolvidos, é que as pessoas estão a exagerar tanto nos métodos de diagnóstico que agora estão a fazer diagnósticos por excesso de micro- cancros, que não iam fazer mal nenhum. Chamamos a isso VOMIT, ou seja, Victimsof Modern Imaging Tecnolo-gies. Isto acaba por ser péssimo, porque nós estamos a ter um sobre diagnóstico de cancro da tiróide, da mama, da próstata e do pulmão, pelo menos estes quatro órgãos, enorme em todo o mundo. O sobre-diagnóstico leva ao so-bre-tratamento, porque todos estes doentes a quem nós fazemos o diagnóstico de um cancro muito pequeno vão ser tratados com cirurgia.
JM – Mas a dada altura essas cirurgias viriam a ser necessárias...
MSS – Não necessariamente. Nós achamos que se devia fazer o “Watchful wainting”, ou seja, esperar com atenção. Por exemplo, de 100 casos de cancros pequeninos, há só um que vai ficar grande. O problema é que não se sabe dizer qual dos casos será o que vai evoluir. É esse o grande desafio. Uma das coisas que me assusta mais no século XXI, nos países desenvolvidos, é a existência de uma tendência para fazer diagnósticos por excesso e tratamentos por excessos.
JM – Teria de haver mais trabalho ao nível da prevenção enão propriamente na necessidade de tratar?
MSS – Existe a prevenção primária: a vacinação do colo do útero, não se deve fumar, não se deve expor ao sol, não se deve engordar. Depois há a prevenção secundária, em que você já tem o tumor mas ele é pequenino e é possível tratar facilmente por cirurgia. Contudo, como passamos a ter uma radiologia e métodos imagiológicos muito bons, começamos a apanhar tumores cada vez mais pequenos
JM – E os custos devem ter aumentado imenso?
MSS – Claro. Por exemplo, na Coreia do Sul, sempre que detetam na tiróide um tumor pequenino, enfiam uma agulha. No Japão, não fazem isso, optam pelo “Watchful wai-ting”. A diferença: Na Coreia do Sul gasta-se 100 vezes mais do que no Japão, mas a mortalidade é a mesma. Os custos dispararam na Coreia do Sul por causa do diagnóstico por excesso. Mas, com isto não estou a dizer que não se deve fazer o diagnóstico e tratamento quando são tumores muito pequenos, há que analisar.
JM – Mas os pacientes, quando são confrontados com um micro-tumor, devem querer resolver o problema pela raiz, não devem querer esperar que o micro-tumor evolua para algo mais grave...
MSS – Normalmente perguntam-nos: “O sr. Dr. pode jurar pela saúde dos seus filhos que eu nunca venha a ter alguma chatice?”. Não podemos responder isso, por isso, muitas vezes os pacientes pedem-nos para tirar o micro-tumor, o que acaba sempre numa situação mutilante. O ideal seria continuarem a ir ao médico fazer o controlo e monitorização.
JM – Por outro lado, o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, dirigido por si, é hoje um dos mais prestigiados centros de investigação e de diagnóstico do cancro, ao nível europeu. O IPATIMUT tem sido determinante na compreensão e no combate às doenças oncológicas?
MSS – Somos internacionalmente reconhecidos. Em 2015,fui escolhido como o patologista mais influente do mundo, mas obtive essa distinção graças ao IPATIMUT, não foi por mim, foi pelo trabalho desenvolvido pelo instituto. Nós temos uma relação muito boa com tudo o que seja Europa, Estados Unidos, Canadá, a Ásia desenvolvida e a América do Sul.
JM – Como se chega a esse patamar, tanto pelo instituto como pelo próprio dr.?
MSS – Foi por nos termos especializado muito na tiróide e no estômago. Portugal tem cientistas e médicos muito bons. Tive gente muito boa no estômago e na tiróide no instituto, primeiro só portugueses e depois de várias partes do mundo que eram melhores do que eu e criámos condições para eles irem muito mais longe. Estes dois tipos de cancros - o do estômago e o da tiróide, que não são muito importantes porque o primeiro caso é muito raro nos países desenvolvidos e o segundo a taxa de sucesso está nos 95por cento – não são muito competitivos. Se eu fosse estudar cancro da mama ou da próstata, seria diferente.
JM – Está a ser muito humilde, já que foi reconhecido pelos seus pares como o patologista mais influente do mundo...
MSS – Não, não estou. O reconhecimento não é só por causa do instituto, é também por eu dar aulas nos Estados Unidos, no norte de África, na Ásia, na América latina. Adoro ser professor. Eu sou um professor, antes de mais nada. Um professor de alunos, um professor de especialistas.
JM – Mas continua a exercer medicina.
MSS – Sim, de diagnóstico, no Hospital de São João. Mas só faço casos de difíceis diagnósticos e das áreas que eu sei. Eu sou muito bom neste pequeno número que é a tiróide e glândulas endócrinas.
JM – Há pouco, elogiou a classe médica e cientista em Portugal. Como analisa a investigação e a ciência no nosso país?
MSS – É razoável. JM – Mas tem tido algumas conquistas, como no combate ao cancro...MSS – Sim, tem e muito fruto da política do Mariano Gago. Isso é verdade, mas na nossa dimensão, não somos melhores do que acontece na Irlanda, Espanha e Grécia.
JM – A investigação portuguesa está ou não no bom caminho?
MSS – Sim, claramente. Está em melhor caminho do que a educação ou a saúde. Mas, apesar de tudo, a ciência é um universo mais pequeno. A educação e a saúde são mais difíceis.
JM – A ciência em Portugal tem sido devidamente reconhecida?
MSS – Em termos pessoais, tem. Esperávamos que as universidades recrutassem mais ativamente os cientistas que se distinguem. Essa foi sempre a ideia do antigo ministro da Ciência, Mariano Gago. No nosso instituto, temos cerca de mil pessoas. Dessas, 400 têm grau de doutor, e dessas 400 há mais de 200 que trabalham nas universidades, mas só 30 ou 40 são professores. Os restantes 170 ou 160 trabalham de graça nas universidades. Não pode ser.
JM – Falta o tal reconhecimento...
MSS – E contratação! As nossas empresas não gostam de recrutar cientistas, gostam de fazer projetos “chave na mão”, enquanto noutros países, os jovens que saem dos institutos de investigação ou vão para as empresas ou vão para as universidades. Nós cá, nem
para um sítio nem para o outro. Há prestígio, há prémios. Mas não há reconhecimento no sentido da empregabilidade
.JM – Quando temos, como diz, bons recursos humanos em Portugal...
MSS – Temos excelentes recursos humanos na ciência portuguesa.
JM – O que fazer para lhes criar mais oportunidades?
MSS- Tem de haver uma mudança de mentalidades do Estado, das empresas e da universidade para uma maior abertura para contratar pessoas de fora. A universidade portuguesa contrata quase sempre para professores as pessoas que começaram lá como assistentes. Contratam muito poucos de fora. Os institutos contratam mais pessoas de fora. A universidade portuguesa ainda é muito conservadora. Quanto às empresas, o problema é que elas não reconhecem vantagens em terem investigadores.
JM – Em Portugal, quais as áreas que precisariam mais de investigadores?
MSS – No caso da saúde ,que é a que eu conheço, há ada farmacêutica e os dispositivos médicos. Na farmacêutica, há muitas áreas interessantes, como na do cancro, na malária e nas infeções em causa do nosso passado africano e em que nós podíamos apostar mais. O problema é que pouca gente paga para a investigação.
JM – Para além disso, deve ser difícil conseguir financiamento para projetos de investigação?
MSS – É muito difícil. O que a indústria hoje quer é, ao nível de problemas da saúde dos países ricos e para além da obesidade, da diabetes, das doenças imunológicas, investigar as doenças neurodegenerativas. Há muita gente afazer investigação em Alzheimer e Parkinson. E a outra área é o cancro, que dá muito dinheiro. As infeções não dão dinheiro, porque só aparecem nos países pobres. Ninguém trabalha na malária ou na lepra, ou agora no zika. É assustador porque essas doenças matam mais do que o cancro.
JM – O que deveria já implicar um maior investimento nessas áreas de investigação...
MSS – Claro. Acho que a Organização Mundial de Saúde devia ser capaz de arranjar dinheiro de todos os países para fazer investigação em doenças que são consideradas típicas dos países pobres. Mas ninguém quer e isso acaba por ser mortal.
CURSOS DE MEDICINA LICEAIS
JM – Os sucessivos governos têm cortado no financiamento ao ensino superior, o que atinge também os cursos de medicina. Até que ponto esses cortes têm afetado a qualidade do ensino?
MSS – Tem sido mau. Os cursos de medicina estão a ficar muito liceais. Primeiro, o governo tem cortado muito no ensino superior. Segundo, as fórmulas de financiamento dependem do número de alunos de pré-graduação, não entram em linha de conta comos doutoramentos, o que é péssimo. O que os directores das faculdades de medicina querem é ter muitos alunos, o que é também péssimo, porque leva a uma massificação e a uma incapacidade dos alunos terem um treino médico mais prático. Porquê? Porque as faculdades querem é receber as propinas dos alunos e estão-se nas tintas. Os alunos têm saído das faculdades de medicina com muito pouco ensino prático.
JM – E entram nos internatos mal preparados?
MSS – Claro. Os que são muito bons, são sempre muito bons. O problema é a média. Tínhamos de ter um curso de medicina que, para os alunos médios, garantisse nível. Estamos a perder isso. Eu presido ao Conselho Nacional dos Centros Académicos Clínicos, que são os hospitais universitários, e sou o presidente do Conselho de Curadores da A3AS – Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, que avalia todas as universidades e todos os cursos em Portugal. Nós estamos muito preocupados porque não tem havido por parte do governo atenção ou reforço no investimento no Ensino Superior.
JM – Tem havido degradação dos cursos...
MSS - Tem. E para inverter isso tem de haver investimento. Não podia ser apenas pelo número de alunos.
JM – … O que prejudica também a investigação e a própria prestação de saúde?
MSS – Sim. Na medicina é óbvio, mas a medicina é muito diferente nas faculdades, porque tem outro problema, que é a articulação entre a faculdade de medicina e o hospital universitário. É pior na medicina do que, por exemplo, nas ciências, onde se pode aprender a base e depois pode-se ir para a docência. Na medicina, a universidade devia preparar alunos capazes de serem médicos.
JM – O número de vagas na medicina tem aumentado.
MSS – Sim, o que é péssimo porque estamos com médicos a mais. E têm vindo por ano cerca de 600 médicos formados fora de Portugal. Temos dois mil em Portugal e mais 600 de fora. Devíamos diminuir muitos atos médicos, que não deviam ser feitos por médicos mas sim por enfermeiros ou por técnicos de saúde e libertar os médicos para funções mais especificamente médicas. E devíamos ter uma política de vagas que contemplasse o interior do país e o litoral e, dentro do litoral, que privilegiasse as especialidades que são mais importantes socialmente e não as que são mais importantes porque dão muito dinheiro.
JM – Acha que não tem sido tido em consideração o cenário global das necessidades da população, para essa distribuição?
MSS – Exatamente. E a dificuldade de fixar médicos no interior. A Noruega, por exemplo, fixa médicos acima do círculo ártico, mas paga-lhes muito melhor do que aos médicos que vivem em Oslo.
JM – Mas, em Portugal, foram criados recentemente incentivos para fixar médicos no interior...
MSS – Mas pagam-lhes mal, não pode ser com tão pouco. No geral, os médicos são muito mal remunerados em Portugal. Em relação à Europa, estamos muito mal remunerados numa profissão que é tão exigente.
JM – Voltando à questão dos cursos, considera que um dos critérios deveria ser a avaliação da vocação do candidato ao curso de medicina?
MSS – Eu sou muito a favor disso. Portugal tem uma coisa muito boa. Dos 300 que entram em Medicina no Porto,37 já são licenciados. Nós abri-mos 37 vagas para alunos com uma certa maturidade. Qual é o problema da colocação? Num curso com muitos candidatos, se começarmos a fazer exames vocacionais, num país em que a gente desconfia de tudo, vão sempre dizer que vamos meter os nossos primos, cunhados e amigos. Nós temos uma tendência muito grande para a cunha, para a informalidade e quando não existe isso, temos medo que exista.
JM – A carga horária dos médicos tem sido uma queixa da classe. Acha que o excesso de horas deixa a própria saúde doente?
MSS – Sim, é horrível. A saúde está muito doente. Por exemplo, eu tenho uma filha médica que está a fazer demasiadas urgências por semana. Há poucos médicos no público, ela não descansa o suficiente, não tem tempo para progredir nem para ensinar os internos. Há um problema de consumo excessivo do ato médico como se a medicina fosse a retalho, mas não é. Um médico não deve ver mais do que X doentes por dia.
JM – O que é preciso para resolver os problemas da saúde e da medicina em Portugal?
MSS – É preciso avaliar e assegurar qualidade. É preciso introduzir qualidade na avaliação, que tem de ser independente. Temos de criar, em Portugal, uma instância na casa da medicina, que avalie a qualidade não só do ensino médico mas também do ensino dos internos, mas que esteja ligada à qualidade dos hospitais e das respetivas faculdades. Enão podemos ter medo de recompensar quem faz bem e punir quem faz mal. O problema em Portugal é que, para além de sermos cunhados uns dos outros, nunca punimos.
Temos de ter em Portugal centros de referência. Isto é: os hospitais não podem operar todos tiróide, quando operam tiróide de dez em dez meses. O problema de Portugal resolve-se se conseguirmos concentrar as competências em poucos sítios e torná-los numa espécie de exemplos avaliados externamente. Eu centrava mais em meia dúzia de instituições públicas exemplares, fazia um contrato complementar com a privada, mas, dentro das públicas, eu introduzia permanentemente a avaliação externa com recompensa/castigo.
Paula Abreu
Fonte: Jornal da Madeira