A história de Maria Salete Faria é mais do que um testemunho de alguém que convive há cerca de 20 anos com dores, por vezes incapacitantes. É acima de tudo uma história de superação. A fibromialgia atinge entre 2 a 4% da população portuguesa e é ainda uma doença crónica «tabu»
Maria Salete Faria tinha 40 anos quando se apercebeu que algo estava errado com o seu corpo. Começou a acordar, todos os dias, com um cansaço extremo, como se não tivesse ido à cama. O sono não conseguia ser-lhe reparador e deixou de poder estar bem qualquer que fosse o lugar. Depois vieram as dores. Insuportáveis e difusas por todo o corpo.
Nesse início, lamenta-se, «ninguém me entendia».
«As pessoas achavam que eu tinha preguiça porque, admito, no início, havia dias que eu não conseguia fazer nada e, noutros dias, conseguia fazer as coisas normalmente». Todavia, reforça, «ter estes sintomas aos 40 anos de idade é sinal de que algo não está bem e que é preciso procurar ajuda».
A verdade é que, apesar de nunca ter trabalhado fora, a vida de Maria Salete não foi leve, pelo contrário, teve períodos bastante pesados, sobretudo ao nível emocional. Durante muitos anos teve a seu cargo várias pessoas idosas e muito dependentes e ainda enfrentou um cancro na boca. Também a morte da madrinha, que a considera como sua mãe, marcou-a de uma forma indelével. Curiosamente, a partida da madrinha coincidiu com o facto de passar a ter a seu cargo uma tia com demência, a sogra com alzheimer, mãe com problemas cardíacos e o pai com parkinson. Foi a partir daí que a sua saúde descambou.
«Eu fui enfermeira à força e, a certa altura, tornei-me impotente. Não conseguia fazer as minhas tarefas a tempo, já não comia e deixei de ter vontade de cuidar de mim. Ia para a cama e não conseguia dormir. De manhã, levantava-me já muito cansada e só conseguia iniciar o meu dia de trabalho lá pelas onze da manhã», conta-nos, salientando que, a par destes sintomas, sentia muitas dores, algumas vezes formigueiros nas extremidades do corpo e outras vezes dores muito semelhantes a queimaduras. «Um sofrimento que ninguém imagina», reforça.
Apesar do crescente desconforto, Maria Salete só decidiu procurar ajuda dois anos depois de ter começado a sentir estes sintomas.
Uma vez diagnosticada a doença, por um reumatologista, decidiu arregaçar as mangas e lutar por uma vida com mais qualidade, apesar de estar consciente de que tinha herdado uma doença para a vida.
Foi então que integrou a já extinta delegação na Madeirada Associação Nacional Contra a Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica (Myos) passou a participar nas atividades que eram promovidas na altura.
Até 2011, Maria Salete e um grupo de amigas, também estas com fibromialgia, encontravam-se todos os sábados na piscina da Penteada para sessões de hidroginástica com água aquecida. Contudo, assim que a água da piscina deixou de ser aquecida, por ordem camarária, o grupo deixou de encontrar-se e a força da delegação na Madeira (que chegou ater mais de 200 associados) esmoreceu. Mesmo assim, apesar de ter havido um afastamento do grupo, conseguiu manter o elo de ligação com algumas amigas tanto que, sempre que possível, encontram-se no café para «conversar e desabafar». Congratulando-se por ter ao seu lado «a melhor pessoa do mundo», que é o seu marido ,Maria Salete reconhece que a fibromialgia é uma doença que a sociedade custa a aceitar e a perceber.
«Eu já estive sem andar e era o meu marido, ou o meu filho, que me levantavam da cama, que me davam banho e davam-me o comer. Foi uma crise tão aguda que me levou ao desespero e desejei mesmo morrer», relata-nos.
Aluna na Universidade Sénior de Santa Maria Maior, Maria Salete encontra neste projeto um escape e uma forma de debelar os sintomas da sua doença. «Uma das razões que me fizerem vir para aqui [universidade sénior] foi poder participar e conviver com os outros porque sou daquelas pessoas que não consegue estar fechada em casa e sou comunicativa por natureza», adianta a nossa interlocutora, deixando um conselho a todas aquelas pessoas que sofrem da mesma doença: «Não se culpabilizem, saiam à rua, aproveitem os dias de sol, façam caminhadas e coisas de que gostam e, essencialmente, procurem ajuda».
DOENÇA NÃO ESCOLHE SEXOS
A fibromialgia, apesar de atingir mais as mulheres, há também homens que padecem desta doença.
Por vergonha, João Costa não quer dar a cara, aceitando apenas dar o seu nome verdadeiro. Explica que não o faz porque no trabalho nunca falou na doença, «não porque seja segredo, mas sim porque nunca se proporcionou o momento para fazê-lo». «Sou é gozado muitas vezes porque sou aquele que está sempre com preguiça e com “manha” para não fazer nada, quando na verdade estou é sentindo no corpo um cansaço extremo e muitas dores», começa por explicar ao JM
João sofre há mais de cinco anos de fibromialgia. O diagnóstico da doença chegou na mesma altura em que ficou desempregado, depois de ter estado 17 anos à frente de uma empresa de construção civil.
Não conseguia dormir, passava os dias extremamente irritado e tinha consciência que o seu mau-humor prejudicava todos aqueles que estavam à sua volta.
«Consegui afastar de mim algumas das pessoas mais importantes da minha vida devido a alguns dos meus comportamentos. Vivia numa grande ansiedade, não queria sair da cama, tomar banho e havia dias que as dores eram tão insuportáveis que não conseguia falar nem ouvir ninguém. Andei muito revoltado e isso, claro, acabou por influenciar quem estava à minha volta», lamenta-se.
Quando o seu casamento acabou, João saiu de casa para ir viver sozinho e isso ajudou a piorar o seu quadro clínico.
«Eu nunca me abri com ninguém. Nunca contei que sofria de dores. As pessoas que conviviam comigo achavam que eu estava assim, irritado com a vida, porque estava sem trabalho. Até os meus amigos mais próximos não entendiam o que se passava comigo e alguns até se afastaram», desabafa.
Finalmente, o “click” de que algo estava errado e que a fadiga extrema não era normal aconteceu quando, um dia em casa, assistiu a um programa diário de televisão onde se abordava a fibromialgia.
«Ao ouvir uma senhora relatar os sintomas e depois um especialista a dizer que a doença também atingia os homens, comecei a pensar: e se eu sofrer disto? E assim foi. Marquei consulta com um reumatologista. Fiz uma série de exames, montes deles para excluir algumas doenças, e foi assim que soube que tinha isto», explica. Nos últimos anos, João diz que aprendeu a lidar um pouco melhor com a patologia. «Já nos vamos entendendo», acrescenta sorrindo.
«Às vezes é melhor quando compreendemos a doença que temos. Acabamos por aprender a lidar com ela e a perceber os sinais do nosso corpo. Tento viver a vida ao máximo. Saio, divirto-me e tenho uma vida praticamente normal. As dores são controladas com analgésicos e relaxantes musculares. Até durmo bem e por isso não preciso de comprimidos para dormir», relata.
na consulta de psicologia os doentes procuram alguém que os ouça
Uma doença crónica que é ainda «tabu»
A psicóloga Lúcia Ferreira esclarece que a fibromialgia «é uma doença crónica ainda tabu, pois é muitas vezes associada a problemas emocionais/psicológicos, e, ainda pior, os doentes são muitas vezes julgados como necessitando de atenção e exagerados»
Além disso, realça, «a panóplia de sintomas é tão vasta, desde as dores generalizadas (apesar de existirem pontos de dor de referência), a falta de concentração, as alterações de memória, alterações do sono, o formigueiro nas mãos, a sensação de ardor que parece queimar também nas mãos, alterações de humor, entre outros», faz com que a doença não seja sempre compreendida por aqueles que estão mais próximos do doente. Ajuda a alimentar esta incompreensão o facto de «não existir nenhum exame analítico ou radiológico que confirme a existência desta patologia», fazendo com que «seja muitas vezes descredibilizada não só pelos familiares, mas também colegas de trabalho, chefes e, por vezes, também por alguns médicos», aponta a psicóloga. Também «a incapacidade de se conseguir realizar determinadas tarefas que aparentemente são tão simples leva a julgamentos de terceiros e à sensação de inutilidade e frustração dos doentes», refere Lúcia Ferreira, acrescentando que «muitas vezes é difícil acreditar que um doente com fibromialgia não consiga segurar nos talheres para comer, ou que levantar-se pela manhã seja uma tarefa quase impossível, dado o cansaço que se abate sobre os doentes». Nas suas consultas, os doentes procuram maioritariamente «alguém que os ouça, que não os julgue e que valide os seus sentimentos», revela.
«Muitas vezes estes doentes vêem o suicídio como a única solução para acabar com as dores horríveis e o cansaço inimaginável de que padecem, que tem que ser devidamente diagnosticado e prevenido», acrescenta.
Por isso, aconselha a psicóloga, é preciso ensinar os doentes a viver com este diagnóstico, «aceitando as limitações impostas pela doença, encontrando alternativas para as dificuldades». Esta é uma grande parte do trabalho efetuado na consulta de psicologia.
Além disso, destaca, «é também extremamente importante envolver os familiares mais próximos no processo de recuperação emocional destes doentes, visto que as suas queixas são muitas vezes (para não dizer quase sempre) desvalorizadas».
Tudo porque «os doentes com fibromialgia, além de toda a sintomatologia que os impede deter qualidade de vida, também se debatem com o facto de serem incompreendidos e rotulados de “preguiçosos” e muitas vezes “manhosos” pelo facto de não cumprirem com os seus afazeres», explica a especialista, concluindo: «A fibromialgia é uma doença muito incapacitante quer física quer emocionalmente, que deve tratada de forma multidisciplinar, sendo o acompanhamento psicológico fundamental em todo o processo.”
Reumatologista Alberto Quintal explica a doença
A fibromialgia é uma doença da civilização
O stress do dia-a-dia, as pressões laborais, depressões e problemas não resolvidos podem levar ao aparecimento da fibromialgia.
Segundo o médico reumatologista Alberto Quintal, a fibromialgia é «uma doença da civilização» que foi considerada há pouco tempo elegível para uma invalidez permanente.
As pessoas com esta doença começam os dias de tal maneira cansadas que não conseguem entrar a horas nos seus serviços ou realizar as tarefas que lhes são propostas. «Sentem um esgotamento brutal», clarifica o médico, referindo que, muitas vezes, poderá estar associado a uma depressão já existente.
É por esta razão [aos múltiplos sinais e sintomas apresentados] que esta doença precisa de ser bem diagnosticada.
Caracterizando-se pela existência de dores musculares intensas em pontos específicos do corpo humano durante longos períodos de tempo, a fibromialgia é conhecida por incapacitaras pessoas de realizarem as suas tarefas quotidianas. «As pessoas acordam mais cansadas do que quando se deitaram, algumas têm muitas enxaquecas, cólon irritável, crises de pânico, formigueiros e adormecimento dos membros e, também, uma fadiga extrema», começa por explicar o reumatologista, salientando que esta sensação de «esgotamento» pode ser desencadeada por circunstâncias do dia-a-dia ou episódios com maiores níveis de stress físico ou psicológico.
Atingindo 2 a 4% da população portuguesa, o médico alerta para o facto de esta doença não ser propriamente uma patologia fácil em termos de diagnóstico imediato.
Primeiro, explica, «vamos procurar os pontos dolorosos mio-fasciais que estão geralmente na metade inferior do corpo, na metade superior do corpo e em determinados pontos [ que não são os da acupunctura ] que se forem pressionados doem. Depois, «vamos pedir exames de rotina por forma a excluirmos outras doenças que apresentam por vezes os mesmos sintomas que a fibromialgia».
É o chamado “diagnóstico de exclusão”, o qual, esclarece, «não é difícil de se fazer».
FUNDAMENTOS CIENTÍFICOS
Alberto Quintal lembra que, cada vez mais, surgem fundamentos científicos e dados bioquímicos a explicar esta doença.
Segundo este reumatologista, «parece haver alguns neurotransmissores que estão mais elevados no sangue nestes doentes», havendo estudos que apontam para uma diferente percepção da dor e do processamento da mesma.
«Épor isso que muitos dos medicamentos que nós prescrevemos é para modificar alguma coisa lá em “cima” [no cérebro] de modo a fazer que a resposta seja outra», justifica o médico, salientando que o que parece haver nestes casos «é um mau processamento da dor e uma transmissão anómala que faz com que o sintoma “dor” se amplifique. Aliás, a fibromialgia é uma amplificação da dor», reforça.
Embora não exista cura para a fibromialgia, Alberto Quintal recorda que há medicação que pode aliviar alguns sintomas como são os relaxantes musculares, anti-inflamatórios ou antidepressivos, sugerindo também a prática de exercício físico «moderado» como é o pilates, a ginástica aeróbica ou a piscina aquecida. Além disso, finaliza, «é preciso que estes doentes resolvam os problemas que estão pendentes e que ajudaram a desencadear a doença».
A origem emocional da patologia
Terapeutas e profissionais ligados às medicinas alternativas são unânimes na explicação da origem da fibromialgia.
Os terapeutas Valcapelli e Luiz Antonio Gasparetto, no Livro Metafísica da Saúde, defendem que, «na fibromialgia, a pessoa sente-se extremamente arrependida por ter sido omissa nas situações passadas, vítima da falta de apoio e de consideração dos outros; foi displicente com as necessidades próprias para atender às solicitações alheias; arrepende-se por ter feito para os outros aquilo que deveria ter feito para si mesma e encontra-se angustiada por não ter tomado as medidas cabíveis que mudariam todo o curso de sua vida».
Estes sentimentos, adiantam, «corroem a pessoa, comprometendo a capacidade de atuar na realidade presente e impedindo-a de alterar os acontecimentos desagradáveis. Ela imagina que ,se tivesse agido de outra maneira, as coisas não estariam tão confusas. No passado houve muitas oportunidades, mas ela não contava com o incentivo daqueles que estavam à sua volta, por isso não assumiu uma conduta diferente, fazendo o que era necessário naquela época».
«Hoje não se conforma por ter se omitido tanto e ter delegado poder a quem não fez jus à confiança depositada nela», continuam e justificam: «esse estado interior se intensifica aponto de se tornar uma condição dolorosa, desencadeando o processo somático em forma de fibromialgia».
Lúcia M. Silva
Fonte: Jornal da Madeira