Mais centrados naquilo que é visível, acabamos por não ver, muitas vezes, aquilo que é invisível aos olhos.

 

 

Há dias, uma jovem de 13 anos de idade dizia-me que deveriam existir descodificadores de adolescentes. “Descodificadores de adolescentes?”, perguntei eu. “Sim, uns aparelhos em que os adultos metiam lá o que nós dizíamos ou fazíamos e depois saía um papel escrito a dizer o que é que aquilo realmente significava e o que eles deviam dizer ou fazer.”

 

Isto parece-me muito interessante! E penso que pode ajudar-nos a reflectir sobre o tipo de coisas que os adultos poderiam lá colocar... e o que efectivamente sairia escrito no papel?

 

Dizia a dada altura essa jovem: “Muitas vezes sinto-me triste, ou porque me chateei com uma amiga na escola, ou porque tive uma má nota num teste, e em vez de chorar fico tão irritada, mas tão irritada... grito, respondo mal, dou pontapés nas coisas.” E os adultos não percebem. Gritam e castigam. Às vezes batem, outras vezes não o fazem, mas vontade não lhes falta.

 

Outros adolescentes dizem ainda “não gosto de ti, odeio-te!”, quando, na verdade, gostam e apenas querem ser gostados. Estão zangados e nem sempre sabem como expressar o que sentem. E os adultos gritam, chamam-lhes mal-educados, ingratos. Outros, ainda, retorquem e dizem “também não gosto de ti!”.

 

 “Odeio a minha mãe, nunca mais quero falar com ela”, dizia recentemente uma adolescente, enquanto lágrimas grossas escorriam pela cara. Penso que o descodificador iria dizer-nos o quão ela se sentia magoada, revoltada, desiludida... e, ao mesmo tempo, desejosa de uma mãe que a acarinhe. Ao ouvir isto, esta mãe reagiu com agressividade, chamando-lhe injusta e ingrata.

 

 “Ontem parti tudo lá em casa”, dizia um adolescente institucionalizado há cinco anos, sem projecto de regresso a casa, nem projecto de adopção, ou qualquer outro projecto de vida. “Em banho-maria”, como ele costuma dizer. Aqui o papel do descodificador diria, muito provavelmente, algo como “quero uma família, quero ser adoptado, quero ser amado, quero ser especial para alguém”. A instituição reagiu com castigos. Perdeu a semanada durante um mês e ficou impedido de ver televisão, jogar videojogos ou praticar o desporto que tanto adora.

 

 “Quero morrer, desaparecer, e corto-me para esquecer tudo”, dizia uma rapariga de 14 anos, mostrando os braços marcados, e as pernas também, as virilhas, os tornozelos... cicatrizes sem regresso, mais profundas do que aquilo que os olhos permitem ver. Estes cortes, diria o descodificador, são talvez o sinal de muita dor emocional e não uma mera chamada de atenção. São de alguém que sofre significativamente, de quem não tem esperança no futuro, nem em si, nem nos outros. De alguém que precisa ser olhado e escutado... A professora repreendeu-a diante de toda a turma, humilhando-a. Os pais reagiram com indignação. “Se lhe damos tudo, tem tudo o que quer, como pode agora fazer-nos isto?” Repito! Fazer-NOS isto.

 

 “Tenho tudo o que quero, tudo o que peço aos meus pais eles compram... uma mala de marca, que pode até custar quase mil euros, uma roupa de marca, sapatos, relógios...” Segundo o tal descodificador, estes pedidos incessantes e excessivos talvez sejam de uma jovem que precisa de atenção, de sentir-se reforçada, integrada e valorizada. Talvez viesse escrito no papel, “conversem com a vossa filha, façam actividades com ela, escutem-na, observem-na, reservem tempo para estar com ela”. Estes pais não dizem não. Não a contrariam e limitam-se a comprar tudo o que lhes é pedido. Sem mais conversas.

 

Os adolescentes são um desafio. Numa fase da vida em que tantas questões se colocam, tantas dúvidas e incertezas, em que tudo e todos são questionados. Tudo é colocado em causa.

 

Os pais e os professores desesperam. “Apetece-me bater-lhe todos os dias”, “não suporto nem admito a forma como me fala, ou não me fala”, “os comportamentos são inadmissíveis e pensa que manda e decide tudo”, são alguns, apenas alguns, exemplos do que nos dizem muitos adultos.

 

Mais centrados naquilo que é visível, acabamos por não ver, muitas vezes, aquilo que é invisível aos olhos. Aquilo que não é dito. O significado dos silêncios. Dos olhares. Do não olhar. Do não falar ou não responder a uma pergunta que lhes é feita. Se precisamos de descodificadores de adolescentes? Eu diria que precisamos de descodificadores de crianças, de adolescentes e de adultos. Porque nem sempre o que é dito é realmente sentido. Porque nem sempre se expressa da melhor forma aquilo que, efectivamente, se pensa e sente. Porque temos muitas vezes comportamentos e reacções paradoxais, estranhas, incompreensíveis para quem vê apenas com os olhos e escuta apenas com os ouvidos.

 

Sim, precisamos aprender a descodificar. Porque nem tudo é preto ou branco. Porque existem infinitos tons de tantas cores.

 

RUTE AGULHAS

 

Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicoterapia e Psicologia da Justiça; docente e investigadora no ISCTE-IUL

 

In "Público”