Em 2017 deram entrada nos serviços do Ministério Público da Comarca da Madeira 253 novos processos por violência doméstica. Um número elevado, a somar aos 431 que transitaram de anos anteriores. Em 31 de Dezembro passado havia 684 inquéritos e com 13 pessoas acusadas do crime.

 

Os relatos são muitos e diversificados, como os que foram relatados pelo DIÁRIO na edição de 25 de Fevereiro. Apesar de existir uma consciência mais sensibilizada para a violência doméstica a verdade é que as estatísticas não descem e a realidade mostra que somos um País violento.

 

Há casos de extrema violência perpetrada ao longo de anos e de assassínios com contornos macabros e delirantes. As autoridades adoptaram uma postura mais próxima da vítima, mas muitos apontam o dedo à Justiça pela demora com que muitas vezes actua. Nalgumas deles tarde demais.

 

A legislação deveria mudar por forma a penalizar mais o agressor? O que falha no combate a um flagelo tão antigo e característico da sociedade portuguesa?

 

Para este ‘Observatório’ fomos à procura de profissionais que lidam com esta temática todos os dias, em busca de respostas, de ideias. As respostas vão ao encontro do que sabemos: a violência doméstica é expressiva na Região. O comandante da PSP afirma mesmo que há, na Região, uma “prevalência ainda considerada elevada quando comparada com outras regiões do país”. O responsável policial deixa sugestões de actuação.

 

A UMAR defende mesmo o agravamento da moldura penal existentes. A luta contra a violência doméstica é a luta de uma sociedade contra elementos que não sabem viver de acordo com as regras básicas do civismo e do respeito pelo outro.

 

Questões:

 

1. O que está na base do aumento da violência doméstica na Região?

 

2. O que está a falhar para que o flagelo não estanque?

 

3. O quadro penal deve ser mais gravoso?

 

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Maria de Lurdes Correia

 

Magistrada do Ministério Público Coordenadora da Comarca da Madeira

 

1 - O fenómeno criminal relacionado com a violência doméstica é efectivamente expressivo na RAM. Contudo não disponho de dados estatísticos rigorosos que me permitam concluir que tais problemáticas e consequentemente os inquéritos dai decorrentes, tenham vindo a aumentar na RAM.

 

2 - Falta uma articulação assertiva entre os vários operadores no terreno, bem como a sensibilidade e a preparação técnica adequada para lidar com tais situações.

 

3 - Não. O quadro penal Português mostra-se, na nossa perspectiva, adequado e proporcional à gravidade dos ilícitos. Contudo, parece-nos essencial que todos os operadores judiciários e não judiciários o olhem e apliquem de modo e maneira diferente.

 

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Superintendente Oliveira Martins

 

Comandante da PSP na Madeira

 

1 - Não é objectivo afirmar-se que tem havido aumento da violência doméstica na Região.

 

Da informação que a PSP dispõe, embora a violência doméstica tenha na Região uma prevalência ainda considerada elevada quando comparada com outras regiões do país, não revela indicadores que apontem no sentido de existir especial tendência para o aumento deste fenómeno.

 

Efectivamente, da informação disponível nos relatórios anuais de segurança interna (RASI) dos últimos anos, bem como da consulta da base de dados sobre violência doméstica da Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (*), o fenómeno em termos do número de ocorrências registadas, tem-se mantido relativamente estável nos últimos anos (ligeiros aumentos ou diminuições estatisticamente pouco significativas), sendo que no caso da Região, embora também sem relevância estatística, em 2017 até se verificou um ligeiro decréscimo do número de casos participados.

 

2 - A resposta a esta questão não é fácil, uma vez que apesar das políticas públicas que ao longo dos anos têm vindo a ser implementadas e do notório esforço e empenho de meios por parte de todas as entidades com responsabilidade nesta matéria (quer a nível da prevenção, quer a nível da investigação criminal e mesmo a nível do apoio social), não tem sido ainda efectivamente possível assistir a uma redução acentuada e efectiva do número de casos registados. Considero quanto a este aspecto, que os resultados só devem ser medidos a longo prazo, por via de uma aposta cada vez mais acentuada na prevenção primária e na educação de todos os cidadãos.

 

Haverá ainda certamente que fazer mais e melhor, sendo que a minha convicção é a de que qualquer modelo de intervenção quanto à temática da violência doméstica, deve ser sempre pensado e executado de modo integrado por todas as entidades envolvidas, em estreita articulação entre si, e considerando as competências legais que cabem a cada um. Devo contudo realçar, que considero que muito já foi feito e continua a ser feito por todos os envolvidos em torno da violência doméstica, procurando prevenir, combater, e também mitigar as consequências desta problemática multidimensional que afecta com especial incidência a nossa sociedade.

 

A nível da Madeira por exemplo, além da intervenção que desenvolve enquanto órgão de polícia criminal (no âmbito da violência doméstica sob coordenação e direcção do Ministério público), a PSP integra também, em parceira com cerca de duas dezenas de outras entidades, o Plano Regional contra a Violência Doméstica (2015-2019), tendo participado activamente no mesmo desde o início dos trabalhos. No âmbito deste Plano Regional e no desenvolvimento e execução dos seus 4 eixos de intervenção e 7 objectivos estratégicos, o Comando Regional da PSP tem pugnado por dar o seu contributo em diversos domínios, tendo vindo igualmente e em simultâneo, a tentar valorizar e enriquecer os seus profissionais com conhecimento mais técnico e científico sobre a violência doméstica, através da promoção de acções de formação específicas para o efeito.

 

3 - Não posso nem devo pronunciar-me sobre o quadro legal em vigor, em razão da natureza das funções públicas que exerço. Aliás, a PSP tem por regra nunca se pronunciar publicamente sobre o quadro penal vigente.

 

Apesar disso, poderei adiantar-lhe algumas ideias estruturantes/alterações quanto à violência doméstica, que a Polícia de Segurança Pública tem vindo a defender:

 

a)- Alteração do paradigma de intervenção, deixando de se focar quase exclusivamente na vítima e passar a atribuir muito maior importância à intervenção junto do agressor, que em rigor é a causa do problema. Esta intervenção deverá objectivar a sua estabilização psicoemocional e a consequente regulação comportamental;

 

b)- Promoção da criação de estruturas locais, especializadas numa resposta coordenada aos casos de violência doméstica - semelhantes às CPCJ mas focadas no fenómeno da violência doméstica, sem se restringirem à violência conjugal e que compreendam uma resposta simultânea (mas não necessariamente conjunta) de apoio e protecção da vítima, e estabilização e regulação do agressor;

 

c)- Promoção da criação de uma “Rede Nacional de Protecção da Vítima de Crime”, que compreenda os gabinetes de atendimento e informação à vítima dos órgãos de polícia criminal e os departamentos de investigação e acção penal, previstos no artigo 18.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro. Tal Rede promoveria uma articulação ainda mais estreita com os órgãos do Ministério da Justiça, e garantidamente beneficiaria a vítima naquilo que ela mais procura junto dos órgãos de polícia criminal – a sua protecção.

 

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Pedro Fonseca

 

Coordenador Acção Social do SESARAM

 

1 - A identificação das situações de violência doméstica demonstram uma evolução do pensamento e do paradigma social. Presentemente o fenómeno da violência doméstica não encontra acolhimento na comunidade como noutrora, em que determinados estereótipos estavam enraizados e quase que legitimavam a acção do agressor.

 

Não há permissividade para estas situações, não há razão alguma para um sujeito ter um comportamento violento para com outro e exercer sobre actos que desrespeitam e violem a dignidade da pessoa humana.

 

Por outro lado, a situação de crise económica em que mergulhamos intensificou um conjunto de problemas sociais que muitas das vezes encontramos associados às situações de violência doméstica como sejam, o desemprego, o alcoolismo, consumo de substâncias elícitas e os problemas de doença mental.

 

2 - O que está a falhar para que o flagelo não estanque?

 

Fenómenos como a pobreza, exclusão social e nomeadamente a violência doméstica encontram-se encrostados no funcionamento das sociedades fazendo parte da sua dinâmica, logo são fenómenos que não são passíveis de ser erradicados. Contudo, recolhendo-se a sua gravidade e perigosidade sendo absolutamente degradantes do ponto de vista da dignidade da pessoa humana. Por isso, as entidades oficiais têm vindo a se organizar sendo o Plano Regional de combate à violência doméstica prova disso, e numa parceria intersectorial e institucional tem sido implementado um conjunto de medidas de combate a este fenómeno. É essencial a conjugação de uma acção que visa o combate e apoio às vítimas e agressores, mas sobretudo uma acção psicoeducativa que vise a prevenção de novas situações e educação para os afectos e cidadania responsável, sendo que os assistentes sociais são profissionais proactivos no acompanhamento das vítimas de violência doméstica e promoção da justiça social.

 

3 - O quadro legal tem de acompanhar as necessidades e a evolução das sociedades, não basta a penalização e a correcção dos comportamentos indesejados. A aposta deve ser num sistema educativo promotor de uma plena cidadania em que valores como a liberdade, autonomia, segurança e bem-estar se encontram salvaguardados.

 

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UMAR Secretariado

 

1 - Os dados do estudo nacional da violência no namoro, feito pela UMAR e que incluíram escolas da Região, servem de prognóstico para o estado da violência de género. Indicam que a legitimação de comportamentos de violência, está perfeitamente enraizada na mentalidade dos jovens. Note-se que 85% dos/as jovens inquiridos/as consideram, em relacionamentos de intimidade, normal a violência física. Estes dados, por si só, já são indicadores de graves problemas que existem na nossa sociedade, que urge mudar. Tudo está interligado, pois os/as jovens também são o espelho das suas famílias e esta legitimação e normalização da violência doméstica está na base de tudo. Se se considera normal a violência, não se considera crime a mesma e é isto que urge desconstruir. Finalmente, consideramos que existem mais vítimas de violência doméstica a apresentar queixa da sua situação, o que também indica que, apesar de tudo, a informação começa a chegar mais longe.

 

2-Em 2017, só na Região Autónoma da Madeira, 9 mulheres morreram assassinadas vítimas de violência de género. Isto indica que há muito a fazer na prevenção da violência, e mesmo no atendimento e encaminhamento às vítimas, com mais abrangência, aconselhamento e formação às vítimas. Mais ONGs deveriam estar envolvidas, trabalhando em rede com o mesmo objectivo. Infelizmente, não é isso que acontece na Região. A prevenção da violência deve também ser primária, ou seja, intervindo junto das camadas mais jovens desde o jardim-de-infância, para mudar mentalidades, para desconstruir estereótipos, preconceitos e prevenir comportamentos de violência. Não deve ser apenas secundária e terciária, ou seja, quando já existe crime de violência doméstica.

 

3 - Sim. Consideramos, em primeiro lugar, que o agressor é que deveria ser afastado da vítima, com medidas de coacção eficientes. Actualmente, são as vítimas que têm que sair de casa, segundo o artigo 29º A, muitas vezes levando as crianças consigo, para se “esconderem” dos agressores em casas de abrigo. Este facto leva a que muitas vítimas não queiram apresentar queixa, deixando que a relação de violência se arraste e degrade durante anos, até que acontece algo mais grave. Consideramos que deveria estar na lei, alterando o artigo 27º, que as forças de segurança pública precisam de formação, no âmbito da igualdade de género e prevenção da violência de género, de forma que o seu atendimento às vítimas seja mais correcto, e que estas se sintam verdadeiramente protegidas. Também consideramos que, apesar do artigo 28º falar em celeridade processual, ou seja, que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, essa urgência não se verifica na realidade.

 

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Ricardo Alves

 

Psiquiatra

 

1 - O que está na base do aumento da violência doméstica na Região?

 

Trata-se claramente de um verdadeiro flagelo social de causas multifactoriais. Numa sociedade onde a crise de valores está instalada estando associada a um aumento dos casos violência a todos os níveis. Neste caso, em particular, é de salientar que a maioria dos casos está associada o consumo de álcool, que na região tem uma expressão muito elevada. Por outro lado é preocupante os casos de violência doméstica entre os adolescentes e adultos jovens, consequência da nova ditadura digital e o consumismo a que todos estamos sujeitos diariamente, onde as emoções são gradualmente desvalorizadas e o sentido de posse aumenta. Apenas uma referencia á violência psicológica, a que não deixa marcas corporais visíveis mas que emocionalmente causa cicatrizes psíquicas permanentes para toda a vida e que muitas vezes é desvalorizada.

 

2 - O que está a falhar para que o flagelo não estanque?

 

As normas e os padrões éticos de valores, quer a nível individual quer comunitário, estão a mudar. Existe actualmente um muito maior apelo ao consumo e ao prazer do que antes. Existe como que um fascínio e uma procura constante pela liberdade plena e assim sendo, numa relação, por vezes a vontade de controlo sobre os sentimentos da outra pessoa não são contidas, logo, surge uma verdadeira tendência para a posse ou domínio da pessoa amada. No entanto, na maior parte dos casos, após os primeiros casos de violência doméstica, o relacionamento mantém-se pois existe um acreditar que o agressor mediante amor, carinho e tolerância poderá ocorrer uma grande mudança do mesmo e que poderá ser uma melhor pessoa.

 

3 - O quadro penal deve ser mais gravoso?

 

O quadro penal abarca vários níveis de resposta perante casos de violência doméstica. Importa sim, consciencializar todas as entidades envolvidas nestes casos e em particular as judiciais para o facto de quem agride uma vez vai agredir novamente e sempre com maior grau de violência. Muitas das vezes as queixas são depois negadas pelas vítimas quando os processos decorrem na justiça e assim são arquivados. Outros, quando transitam em julgamento, por vezes, resultam em penas suspensas ou outro tipo de medidas em que o agressor fica potencialmente em contacto com a vítima. Isto leva a três situações: a vítima faz como que um baixar dos braços (não vale a pena apresentar queixa), o agressor fica com a noção de liberdade e impunidade dos seus comportamentos agressivos e a própria sociedade vai desvalorizando estes casos desacreditando na justiça.

 

In “Diário de Notícias”