Ana Feijão, coordenadora da Unidade de Alcoologia do Centro, acredita que a crise dos últimos anos ainda está a ter impacto no comportamento dos portugueses.

A coordenadora da Unidade de Alcoologia do Centro, Ana Feijão, diz que aumento do consumo excessivo em faixas etárias mais velhas, a partir dos 45 anos, revelado nesta quarta-feira, pode ainda ser resultado dos anos de crise socioeconómica.

 

Há uma relação entre um maior número mortes por intoxicação alcoólica com o aumento da frequência do binge drinking (consumo de várias doses de bebida numa única ocasião com o objectivo de ficar embriagado)?

 

Sim. Em geral, quando as pessoas bebem com alguma dilatação no tempo, acabam por ficar inconscientes ou tão limitadas do ponto de vista motor que não conseguem continuar a beber. Mas em situações de binge drinking conseguem continuar conscientes antes de todo o álcool estar em circulação. Por isso, é possível que se atinjam concentrações potencialmente fatais. Acontece com pessoas jovens, que não têm experiência de consumo e consomem muito de uma só vez. Mas também podem ser pessoas de qualquer idade que consumam muito de repente. Estou a pensar em apostas como “quem consegue beber uma garrafa de bagaço inteira de seguida” – isto constitui um risco de morte mesmo.

 

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Na prática, de que quantidade de álcool estamos a falar?

 

Normalmente, com uma concentração de 4 gramas de álcool por litro de sangue já se está em coma. Sabemos que pessoas muito habituadas a beber, e que quase permanentemente têm grandes quantidades de álcool no sangue, acabam por adquirir alguma tolerância. A questão é que a partir de determinada concentração, cerca de 4,5/5 g/l, o risco de paragem respiratória e de paragem cardiovascular é muito grande.

 

Como é que se pode intervir para diminuir estes comportamentos de risco?

 

Os jovens são particularmente vulneráveis a estes novos padrões de consumo e correm grandes riscos quando juntam a inexperiência do consumo de álcool à inexperiência, por exemplo, na condução. É uma área em que temos que intervir. Mas tem que ser uma intervenção transversal a toda a sociedade, que tem que passar pela formação dos jovens, por uma política de preços, publicidade e fiscalização até à formação das pessoas que trabalham na indústria do divertimento e da noite. E até aos políticos. Tem que haver alguém que pense nestas questões, daí a nossa defesa do regresso de um organismo nacional para estas dependências.

 

O SICAD notou ainda um aumento do consumo excessivo de álcool nas mulheres e nas pessoas com mais de 45 anos. O que pode explicar este fenómeno?

 

Na ausência de grandes estudos sobre estes últimos anos, a noção que temos é que a mudança de estilo de vida das mulheres – que se tornaram mais activas, têm novas profissões e estão mais tempo fora de casa – as aproximou do estilo de vida dos homens.

 

Em relação às pessoas com mais de 45 anos, penso que nestes últimos anos, e especificamente em Portugal, isto pode relacionar-se com os anos de crise. Este país passou alguns anos em que a sociedade ficou deprimida. Nós tínhamos, não só as consequências directas da crise mas, em termos sociais, uma série de pensamentos depressivos, de dificuldade, de falta de esperança. E isso fez com que aumentasse o consumo. E ainda não recuperámos. Embora o clima já seja diferente, acho que esta crise e o espírito com que a vivemos têm efeitos sociológicos muito mais longos do que seria de pensar à partida. Até os próprios profissionais estão ainda debaixo do efeito de uma série de anos em que parecia que nada ia funciona e que tudo eram dificuldades. E ainda não conseguimos recuperar o entusiasmo.

 

Ainda no que diz respeito ao álcool, houve um aumento das pessoas em tratamento, mas uma diminuição dos internamentos em unidades de alcoologia. Como se explica?

 

Há duas questões. Primeiro, as unidades de tratamento locais do ex-IDT [Instituto da Droga e da Toxicodependência] passaram a fazer acompanhamento de alcoólicos. É um tratamento de maior proximidade, uma vez que as unidades de alcoologia estão concentradas em Lisboa, Porto e Coimbra. Com isto, é natural que o número de pessoas em tratamento tenha aumentado porque há mais serviços disponibilizados para as tratar.

 

Já o facto do número de internamentos ter diminuído tem a ver com as dificuldades dos serviços. O facto de as equipas não se renovarem e não haver números de profissionais adequados fez com que as unidades de Lisboa e do Porto tivessem que reduzir o número de camas disponíveis. Por outro lado, há novas perspectivas em termos de tratamento: sempre que possível fazermos tratamentos em ambulatório.

 

MARGARIDA DAVID CARDOSO

 

In “Público